- Em busca de leis sanitárias e fiscais mais frouxas, mais de 2.000 alemães se mudaram para o país sul-americano desde o início da pandemia
- Por Da Redação 4 abr 2022
Desde que a pandemia começou, milhares de alemães decidiram cruzar mais de 10.000 quilômetros do Oceano Atlântico para experimentar uma nova vida em um destino inesperado na América do Sul: o Paraguai. A maior parte desse grupo é formada por extremistas de direita, que pretendem fugir das obrigações sanitárias impostas pela Covid-19, dos altos impostos na Europa e também da convivência com muçulmanos. São, portanto, migrantes anti-imigração.
Veículos de imprensa do Paraguai e da Europa vêm noticiando o fenômeno nos últimos meses. Segundo revelou a Diretoria de Migração do país sul-americano ao diário espanhol El País, pelo menos 1.644 alemães concluíram seu processo de permanência no Paraguai em 2021, quase o triplo do ano anterior. E, até o fim de março deste ano, outros 575 fizeram o mesmo.
Há, oficialmente, 7.731 alemães vivendo no Paraguai, mas é impossível precisar quantos deles atravessaram os 3.739 quilômetros de fronteira fluvial e terrestre com Brasil, Argentina ou Bolívia. A embaixada alemã em Assunção trabalha com número bem maior, entre 22.000 e 30.000 alemães, sendo que, dos 7 milhões de habitantes do país, mais de 300.000 têm origem germânica.
Os últimos alemães antivacina a desembarcar em solo paraguaio foram deportados ou tiveram problemas, pois desde 12 de janeiro está proibida a entrada de pessoas sem o passaporte de vacinação completo. Antes, porém, o país aparecia como refúgio ideal não apenas de não vacinados, mas também de outros extremistas em busca de uma nova vida tropical.
Chama atenção o fato de diversos deles alegarem medo de homicídios e de uma suposta onda de violência causada por imigrantes muçulmanos, pois a taxa de homicídios no Paraguai é mais de 8 vezes maior que na Alemanha — 6,7 mortes a cada 10.000 habitantes, contra 0,8 no caso dos germânicos, segundo dados de 2020 da Organização das Nações Unidas (ONU).
Em um documentário feito pelo canal de televisão alemão Y-Kollektiv, um casal que decidiu deixar para trás a “mentalidade quadrada” dos europeus e pretendia abrir um restaurante em Assunção admitiu que se surpreendeu negativamente ao deparar com uma capital “muito suja, com muito lixo, buracos enormes no chão e muita pobreza.” A maioria dos alemães chega em solo paraguaio sem nenhum conhecimento de espanhol nem guarani, os idiomas oficiais do país.
Por que o Paraguai?
Em um artigo intitulado “Alemães no Paraguai: guia básico para entender o interesse em nosso país”, do diário ABC Color, o cônsul alemão em Assunção, Frank Gauls, admite que muitos alemães decidiram se aventurar pois “não concordam com a política da pandemia na Alemanha ou na Europa e acham que no Paraguai é mais fácil, talvez sem tantas restrições”.
“Na minha opinião, outro grande atrativo é o clima, mais quente, e o fato de haver uma colônia com infraestrutura e oportunidades de negócios. Outro atrativo é a pouca burocracia, é mais fácil radicar-se no Paraguai que em outros países”, disse. No texto, Gauls reforça que a presença alemã no Paraguai “não começou ontem”.Continua após a publicidade
No fim do século XIX, em meio a uma onda de antissemitismo que já tomava a Europa, foi fundada a colônia alemã de Nova Germânia no Paraguai. Seu criador foi Bernhard Förster, um médico casado com Elisabeth Nietzsche, irmã do filósofo alemão Friedrich Nietzsche, que tinha o objetivo de expandir a “superioridade da raça alemã” no chamado Novo Mundo.
Também no Paraguai, foi fundado o primeiro partido nazista fora da Alemanha (em 1928), em outra comunidade, chamada Colônia Independência. A migração europeia na região se expandiu drasticamente durante as guerras mundiais. Foi lá que se esconderam por décadas dois dos mais célebres criminosos de guerra: o médico Josef Menguele — famoso pela crueldade de suas experiências com crianças em campos de concentração nazistas, e que morreria no Brasil —, e o piloto de aviação de Adolf Hitler, Hans-Ulrich Rudel, que se tornaria conselheiro do ditador paraguaio Alfredo Stroessner, que era filho de alemão.
Paraíso Verde, um refúgio negacionista
Uma área de 16.000 metros quadrados, nos arredores de Caazapá, a cerca de quatro horas de Assunção, tornou-se o refúgio ideal para os europeus antivacina. Batizado de Paraíso Verde, o local no meio dos pampas, cercado por guardas armados, surgiu em 2016 por iniciativa de Erwin e Sylvia Annau, um casal abertamente antivacina e islamofóbico. Eles criaram a “colônia livre” alegando “o sonho de uma vida melhor e um futuro fora da Matrix”.
Em seu site, o Paraíso Verde alega ser o lar ideal para quem busca “fugir de tendências socialistas em todo o mundo e a disseminação global de implementações degenerativas como 5G, chemtrail (uma teoria da conspiração sobre um suposto programa secreto para liberar produtos químicos tóxicos no meio ambiente), a água fluoretada, vacinas obrigatórias e decretos sanitários”.
Segundo a agência AFP, que visitou o local, os fundadores compraram a propriedade em Paraíso Verde sem visitá-la, pois acreditaram “na orientação divina”. Erwin Annau era membro da Igreja da Cientologia, considerada uma seita perigosa, e foi condenado por fraude nos Estados Unidos por anunciar um produto de limpeza com propriedades científicas não comprovadas.
No Paraguai, ele e sua esposa promovem práticas médicas não comprovadas, tratadas por eles como uma “alternativa germânica à medicina clínica convencional”, que, ainda segundo sua tese estapafúrdia, seria uma conspiração judaica para dizimar não judeus. Annau esperava receber cerca de 4.000 pessoas em seu complexo, mas o número atualmente não passa de 300. O Ministério Público do Paraguai acumula denúncias contra as empresas que gerem o Paraíso Verde.
Um conhecido alemão radicado no Paraguai, Thomas Vinke, que comanda um programa de televisão sobre a natureza da ameaçada floresta do Chaco, lamentou a chegada deste grupo de compatriotas. “Depois da crise de refugiados em 2015 vieram os cidadãos antidemocráticos, extremistas de direita, pessoas extremamente barulhentas e agressivas. E agora muitos médicos alternativos, curandeiros e opositores da vacinação estão chegando”, disse Vinke à rede alemã Deutsche Welle.
A reportagem do El País ressalta que de todos os argumentos utilizados por migrantes alemães há um totalmente verdadeiro: praticamente não se pagam impostos no Paraguai, fazendo do país um “quase paraíso fiscal”.
A presença de europeus na região provocou outra reação inesperada: a alta no preço dos terrenos. Em meio a um sistema de saúde precário, o Paraguai já registrou mais de 18.000 mortes de Covid-19 e apenas 46% da população recebeu duas ou mais doses de vacina. Revista Veja