Psiquiatras relatam um problema ainda mais sério: o uso de forma “recreativa”, simplesmente para “curtir o barato”.
Diagnosticado clinicamente com transtorno de ansiedade, o estudante universitário Pedro Henrique Alves Pereira, de 21 anos, toma o medicamento com o princípio ativo zolpidem nos momentos de crise, quando tem dificuldade para dormir. Na última quarta-feira, 9, ele tomou o comprimido, mas foi fazer um lanche rápido, o que contraria a principal recomendação dos médicos para este remédio: tomá-lo já deitado, pronto para o sono. Como consequência, Pedro teve alucinações e chegou a realizar uma compra de dois pacotes de viagens para Buenos Aires, na Argentina, no valor de R$ 9,2 mil.
O episódio viralizou nas redes sociais com mais de 174 mil curtidas e 5 mil comentários no Twitter. Embora a maioria dos comentários seja bem-humorada e até jocosa – existem dezenas de relatos de comportamentos incomuns dos usuários após o uso do mesmo remédio -, a experiência de Pedro, aluno de Fisioterapia na Unifacisa em Campina Grande (PB), alerta para o uso incorreto da droga, vendido sob prescrição médica.
No ano passado, investigações da Polícia Civil indicaram que a deputada federal Joice Hasselmann (PSDB-SP) sofreu uma queda e se feriu possivelmente por causa do uso de medicamento Stilnox que induz ao sono e possui o mesmo princípio ativo.
Psiquiatras relatam um problema ainda mais sério: o uso de forma “recreativa”, simplesmente para “curtir o barato”. Ou seja: jovens estão usando remédios para ter alucinações. “É um remédio que deve ser tomado por indicação médica. O ideal é tomar esse remédio e dormir. Tem gente que toma o remédio de forma recreativa, como se fosse uma droga”, alerta o psiquiatra Leandro Valiengo, coordenador dos ambulatórios de Cetamina e EMT do Instituto de Psiquiatria (IPq) do Hospital das Clínicas da USP. “Além de colocar a própria vida em risco, o paciente pode tornar dependente”, afirma.
O psiquiatra e ex-professor da Faculdade de Ciêncas Médicas da Unicamp Carlos Cais explica que esse uso ocorre porque o zolpidem produz leve efeito de euforia em uma pequena parcela dos pacientes. As pseudo alucinações, como ele classifica, são mais raras. O especialista explica que o paciente se sente como se estivesse leve ou moderadamente alcoolizado. Uma de suas antigas pacientes começou a usar o remédio por conta própria, durante o dia – sete a oito comprimidos – para “curar” sintomas de depressão. “Além do risco de usar as doses acima da recomendação médica, ela não estava tratando a depressão”, diz o sócio fundador da Elibré Saúde Mental.
Medicamento deve ser usado em tratamentos de curta duração
O zolpidem se trata-se de um medicamento controlado, vendido sob prescrição médica e retenção de receita. Ele integra o chamado “grupo Z” de medicamentos ao lado da Zopiclona, Zaleplon, Eszopiclona. De acordo com a bula eletrônica da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), o zolpidem é recomendado para tratamento de curta duração para insônia. Entre os efeitos colaterais mais comuns estão: sonolência, dor de cabeça, tontura, distúrbios cognitivos, como amnésia anterógrada (os eventos após a ingestão do remédio), diarreia, náusea, dor abdominal, vômito, dor nas costas e fadiga.
A bula adverte ainda que o medicamento pode causar sonambulismo ou outros comportamentos incomuns. “Em um dos episódios, eu tomei o remédio e fui tomar banho. Na volta, eu me deparei com o cachorro dormindo com frio na minha cama. Muito depois eu percebi que era só o lençol porque eu não tenho cachorro”, escreveu a internauta Rafa Putier.
Valiengo conta que os lapsos de memória, como os que ocorreram com Pedro, também são comuns. O médico conta que uma de suas pacientes usou o remédio e, quando se deu conta, estava no pedágio da Rodovia dos Imigrantes, principal acesso ao litoral de São Paulo. Pedro Henrique só conseguiu se lembrar do que havia acontecido porque enviou mensagens aos amigos e chegou a gravar um vídeo em que saía para visitar a avó que, na verdade, mora com ele.
Os efeitos adversos estão relacionados ao mau uso do medicamento, na avaliação do farmacêutico Marcelo Polacow, presidente do Conselho Regional de Farmácia de São Paulo. “É um medicamento seguro. Mas as pessoas acreditam que o remédio vai dar sono, ela vai para cama e vai dormir. Esse não é o mecanismo de funcionamento dele”, alerta o especialista. “A pessoa tem de deitar na cama, apagar as luzes e evitar o contato com as telas. Ela não pode levantar. O remédio vai induzir ao sono de seis ou sete horas”, completa.
Polacow explica que a embalagem do medicamento no mercado americano traz alerta sobre risco de sonambulismo e desconexão com a realidade. Se isso acontecer, o uso deve ser interrompido e o médico e farmacêutico tem de ser avisados.
Pedro Henrique conseguiu cancelar as compras que fez. Elas ficaram pendentes por iniciativa do próprio banco em função do valor da transação e do horário em que foi realizada. No dia seguinte, a compra do pacote aéreo foi cancelada. Ele vai consultar sua psiquiatra sobre a continuidade do uso do medicamento. Nas últimas noites, ele conseguiu dormir sem o uso do medicamento.
O futuro fisioterapeuta critica o comportamento de alguns usuários das redes sociais diante do seu sofrimento. “Pessoas que não conhecem o poder do remédio dizem que eu estava querendo chamar a a atenção nas redes sociais. Eu faço acompanhamento psiquiátrico. Algumas reações revelam certo preconceito com o tratamento psíquico”.