Especialistas alertam, porém, que qualquer pessoa pode se infectar pelo vírus, cujas principais medidas de proteção são lavar bem as mãos e evitar contato com pessoas contaminadas.
Médicos têm relatado aumento rápido de pacientes com sintomas de varíola dos macacos em São Paulo, sobretudo entre homens gays, bissexuais, mulheres transexuais e travestis. Esse padrão de contágio, entre homens que fazem sexo com outros homens, também foi observado em outros países, como Espanha e Reino Unido – os britânicos, inclusive, recomendaram priorizar gays e bissexuais na vacinação. Especialistas alertam, porém, que qualquer pessoa pode se infectar pelo vírus, cujas principais medidas de proteção são lavar bem as mãos e evitar contato com pessoas contaminadas.
Os profissionais da saúde temem que, nas próximas semanas, haja aumento ainda maior da doença por causa da Parada do Orgulho LGBT+ de São Paulo, que reuniu milhares de participantes na 1ª edição presencial após dois anos. Como o período de incubação do vírus pode durar até 21 dias, os médicos notam que a frequência de pacientes suspeitos que chegam aos consultórios tem aumentado desde a última semana, o que coincide com o fluxo de turistas e festas que estiveram na capital paulista para o evento. O motivo de prevalência da doença entre o grupo de homens que se relacionam com homens, entretanto, ainda não foi descoberto.
Até 28 de junho, o Brasil tinha apenas 21 casos confirmados da varíola, segundo o último boletim divulgado pelo Ministério da Saúde. Na última terça-feira, 5, a pasta já contabilizava 80 pacientes com a doença em todo o território nacional, dos quais 52 estavam em São Paulo. O governo paulista, porém, já tem um balanço mais atualizado, de 77 infecções confirmadas. Como a quantidade de testes disponíveis é restrita, há uma demora entre o envio de material para análise e a confirmação do caso ou não.
“Trabalho com HIV há 32 anos e estou tendo um ‘déjà vu’ (sensação de já ter visto algo antes) terrível”, comenta o infectologista Fábio Araújo, que atende no Instituto Emílio Ribas e no Centro de Referência e Treinamento para DST/Aids de Santa Cruz, na Vila Mariana. No início da epidemia de HIV, nos anos 1980, o vírus era visto como um problema exclusivo da comunidade gay, e depois a doença avançou pelos mais diferentes grupos nas décadas seguintes.
No último fim de semana, Araújo conta ter recebido pelo menos oito casos suspeitos e diz que os números “estão subindo exponencialmente”. “A doença não é letal, mas é desfigurante.” Embora as lesões possam ser curadas, alguns casos deixam marcas e cicatrizes. E Araújo destaca que a transmissão não se dá exclusivamente pela via sexual. “A doença é transmitida pelo contato direto, como a saliva, ao contrário da covid, que é por aerosol. A infecção está sendo através do beijo”, diz.
Na Espanha, por exemplo, o comportamento do vírus foi similar e os primeiros focos de contágio identificados foram durante uma programação de festas nas Ilhas Canárias, durante a primeira semana de maio, e em uma sauna gay de Madri. Hoje, o país já contabiliza mais de 800 casos confirmados.
O padrão de infecção também foi reconhecido nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha, onde as campanhas de vacinação contra a varíola dos macacos foram direcionadas especificamente para homens gays e bissexuais. No Reino Unido, 96% dos 1235 casos confirmados até a última sexta-feira, 1º, eram em homens que se relacionam com homens, segundo a Agência de Segurança em Saúde.
Aqueles que têm procurado atendimento em São Paulo apresentam as lesões na pele características da varíola dos macacos, mas algumas dessas erupções cutâneas têm se manifestado apenas na região genital e/ou perineal. Isso tem dificultado ainda mais o diagnóstico, por confundir médicos e pacientes com outras infecções sexualmente transmissíveis, como a sífilis ou a gonorreia.
O perfil dos pacientes segue um padrão claro em mais de 90% dos casos, de acordo com a observação dos médicos ouvidos pelo Estadão. Eles têm entre 18 e 36 anos e a grande maioria faz uso de PrEP (profilaxia de pré-exposição), remédio tomado diariamente e que diminui drasticamente o risco de transmissão do HIV pelo ato sexual, mas não protege de outras infecções sexualmente transmissíveis (IST).
“Todos que atendi tiveram contato sexual recente com outros homens. Dois dos pacientes, inclusive, conseguimos rastrear a infecção para o mesmo profissional do sexo, que se infectou durante uma viagem à Espanha”, relata Danilo Chiaradia Finamor, médico do ambulatório de IST do CRT Santa Cruz.
Um terceiro médico ouvido pela reportagem, que trabalha no Emílio Ribas e não quis se identificar, disse ter sabido apenas de pacientes homens com diagnóstico confirmado no instituto. Os médicos entrevistados já consideram a transmissão da varíola dos macacos em São Paulo como autóctone, quando acontece no mesmo local em que a pessoa infectada mora. Isso também representa uma mudança no perfil dos pacientes, que antes tinham algum histórico de viagem à Europa. O Estadão tentou contato com algum porta-voz do Emílio Ribas, mas não obteve resposta.
Uma das principais preocupações entre todos os profissionais da saúde ouvidos pela reportagem é a falta de informações sobre a doença e o período prolongado em que ela continua transmissível. “A disseminação é muito rápida e os quadros clínicos são muito variados. Já vi desde pacientes que têm muita febre e dor no corpo até pessoas que demoram a apresentar sintomas”, conta Rico Vasconcelos, infectologista que atende em consultório particular e no Hospital das Clínicas.
Ele afirma que a subnotificação também tem sido um problema, uma vez que o processo de coleta, envio e análise das amostras é lento e desencontrado entre os diferentes níveis da administração pública.
“Até mesmo os profissionais que estão atentos, com grau de suspeição alto para a varíola dos macacos, estão com dificuldades. Já cheguei a perder meio dia de trabalho para fazer isso. Você acha que todo médico na ponta do atendimento vai conseguir fazer o mesmo? Muitos vão mandar o paciente para casa com remédio para sífilis e a transmissão vai continuar”, desabafa.
A Secretaria Municipal da Saúde disse que dos 67 pacientes confirmados com a doença na capital, apenas 15 tinham histórico de viagens. Em nota, a pasta afirmou que acompanha o cenário nacional e internacional sobre a doença. Disse ainda que instituiu na última sexta-feira, 1º, um novo protocolo de atendimentos para as redes pública e privada, sem detalhar a atualização de orientações.
Doença pode passar até de mãe para filho, diz OMS
Já a Secretaria de Estado da Saúde disse que os 77 pacientes contabilizados pela pasta “estão com boa evolução do quadro e são acompanhados pelas vigilâncias epidemiológicas dos seus respectivos municípios”. Em nota, também frisou que o vírus “não tem a participação de macacos na transmissão para seres humanos” e que “o atual surto tem prevalência de transmissão de contato íntimo e sexual”. Questionada se há alguma campanha de conscientização, combate ou vacinação à doença, a administração estadual não respondeu.
No último dia 23, um comitê da Organização Mundial da Saúde (OMS) decidiu que o surto atual de varíola ainda não pode ser classificado como uma “emergência sanitária pública”. O órgão frisou, entretanto, que controlar a transmissão da doença requer “esforços intensos de resposta” e que o evento já teria uma “natureza emergencial”.
Na atualização de diretrizes da doença, a OMS também apontou como o surto atual está subnotificado e indica que a transmissão da varíola tem ocorrido já há algum tempo, inclusive de forma vertical, passando de mãe para filho. “Uma grande parte da população está vulnerável ao vírus da varíola, uma vez que a vacinação foi descontinuada na década de 1980”, alerta a organização.