Sonambulismo, mexer as pernas sem parar, falar dormindo (sonilóquio), ranger os dentes (bruxismo) e terror noturno são as mais conhecidas parassonias, nome dado aos distúrbios dos sono caracterizados por movimentos anormais que causam interrupções no padrão normal de descanso e geram cansaço, irritação e prejuízo às funções cognitivas e físicas no dia seguinte. Nenhuma delas, porém, é tão complexa quanto a sexônia, distúrbio que leva a pessoa a fazer sexo enquanto dorme.
Parece o melhor dos mundos, já que transar e dormir são duas atividades prazerosas, mas na prática não é bem assim. Se não tratada, a sexônia é uma condição médica que pode causar vários problemas.
De acordo com Lívia Leite Góes Gitaí, doutora em neurologia, a sexônia está classificada primariamente como despertar confusional, uma vez que costuma se limitar a atividades na própria cama, mas também já foi relatada em episódios de sonambulismo, em que o indivíduo se levanta e caminha.
“O despertar confusional e o sonambulismo são parassonias do tipo desordem do despertar, nas quais a pessoa apresenta um despertar parcial durante o sono de ondas lentas e assim fica em um estado de dissociação entre a vigília e o sono profundo”, afirma.
Durante as crises, as manifestações variam. “Pode acontecer masturbação, carícias, conversas, sexo oral ou anal e mesmo as relações de fato, hétero ou homossexuais”, diz Geraldo Rizzo, neurologista e especialista em medicina do sono, do Hospital Moinhos de Vento, de Porto Alegre.
Impulsos violentos
A participação ou não de uma outra pessoa no ato é a parte delicada da questão, pois mesmo os parceiros de anos podem se assustar com os ataques. É por isso que, segundo o neurofisiologista Leonardo Ierardi Goulart, do Laboratório do Sono do Hospital Israelita Albert Einstein, de São Paulo, a sexônia é perigosa.
“Os comportamentos sexuais podem acontecer acompanhados de impulsos violentos. É um distúrbio com implicações psicológicas e sociais extremamente impactantes, com o risco, inclusive, de ser considerado crime”, afirma Goulart.
Já existiram casos de homens –a maior parte dos portadores do distúrbio pertence ao sexo masculino, na faixa entre 25 e 40 anos– que foram acusados de abuso sexual por atacarem mulheres e crianças durante episódios de sexônia.
“Há alguns casos documentados de julgamentos em que a defesa alegou a presença do distúrbio como forma de inocentar. A presença de especialistas em medicina do sono durante o processo é importante para avaliação das circunstâncias, pois há características fenomenológicas muito úteis na diferenciação entre sexônia e simulação. Na sexônia, por exemplo, o indivíduo fica em estado transicional entre o sono profundo e a vigília, não sendo capaz de realizar atividades complexas”, fala Lívia.
O transtorno não tem nada a ver com a libido. “Não se trata de desejo nem há nenhum tipo de disfunção hormonal envolvido”, diz Antônio Carlos Montanaro, neurologista do Hospital Beneficência Portuguesa de São Paulo.
É um comportamento automático desencadeado pela ativação de sistemas cerebrais relacionados a automatismos de funções como alimentar, vaguear e procriar. “A duração dos episódios varia, mas eles costumam ser breves. Nem sempre a pessoa se lembra do que houve no dia seguinte”, fala Luciano Ribeiro, neurologista da ABS (Associação Brasileira do Sono). Alguns episódios, no entanto, podem durar cerca de 30 a 40 minutos.
Em seu artigo “Sexsomnia: Abnormal Sexual Behavior During Sleep” (“Comportamento Sexual Anormal durante o Sono”, na tradução do inglês), Monica Levy Andersen, professora livre-docente do Departamento de Psicobiologia e chefe da disciplina de Medicina e Biologia do Sono da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), aponta os principais fatores, reconhecidos por estudos, que desencadeiam a sexônia: privação de sono, sono fragmentado, consumo de drogas e/ou álcool, estresse e fadiga excessiva.
Ela observa que vem ocorrendo um aumento de distúrbios no ritmo de sono-vigília e na incidência da privação do sono na população geral. “Entre as principais razões destacam-se a exposição constante à luz e a atividades artificiais, como ver TV ou acessar a internet, associadas às pressões sociais e econômicas para encurtar o tempo gasto no sono”, diz Monica.
Durante uma crise de sexônia, a pessoa não deve ser acordada –a não ser que a manifestação envolva violência–, mas reconduzida ao sono e/ou de volta à cama, evitando-se sempre excesso de estímulo, tátil, luminoso ou sonoro.
Diagnóstico
Além do EEG (eletroencefalograma), outro exame significativo para identificar o distúrbio é a polissonografia, que registra as ondas cerebrais, o nível de oxigênio no sangue e a frequência cardíaca e respiratória, assim como os movimentos dos olhos e nas pernas durante o sono.
”Se não ocorrerem manifestações típicas durante a noite de realização do exame, o que é muito comum, uma vez que os episódios não costumam ser diários, a polissonografia pode mostrar sinais indiretos indicativos de parassonia e, principalmente, pode contribuir para o diagnóstico de outros transtornos do sono que estejam contribuindo para o quadro”, diz Lívia.
Alguns especialistas recomendam que o exame seja feito ao lado do parceiro, para uma comprovação mais efetiva. A polissonografia é um procedimento que pode ajudar no acúmulo de evidências, mas o diagnóstico final só é dado depois de uma anamnese detalhada para avaliar os hábitos do paciente.
O tratamento depende de cada caso, mas costuma envolver medicamentos, psicoterapia e até meditação. “Geralmente, o tratamento não é definitivo, e a tendência à sexônia sempre vai existir”, diz Leonardo, do Einstein.
Também é fundamental o controle do ambiente para minimizar o risco de danos como a presença de grades nas janelas, o controle das chaves das portas e a retirada de instrumentos potencialmente perigosos da cabeceira ou do quarto.
O ideal é que não só o paciente aprenda a lidar com a questão, como também o par e a família se informem com especialistas para descobrir qual a melhor maneira de ajudar a evitar os episódios. “Reconhecer a sexônia como um transtorno do sono passível de diagnóstico médico pode ser um alívio em uma trajetória de silêncio, medo, culpa e vergonha”, fala Lívia.
Fonte: Uol