Projeto colocado em prática por psicólogo em hospital de Manaus permitiu que idosa pudesse conversar com parentes horas antes de morrer.
Por Laís Modelli, G1
“Por que eles não veem mais me ver?”. A aflita pergunta era feita principalmente por pacientes idosos depois que todas as visitas foram suspensas para evitar a transmissão da Covid-19 no Hospital e Pronto-socorro 28 de Agosto, em Manaus, da Secretaria Estadual de Saúde do Amazonas. A capital manauara tem sido fortemente atingida pela pandemia do novo coronavírus desde março.
Com rápidas mudanças de orientações e protocolos diante de uma situação nova, alguns doentes começaram a pensar que tinham sido abandonados pela família.
“Até os que entendiam por que precisavam ficar isolados apresentavam muita ansiedade, pensamentos negativos, e isso interfere na recuperação do paciente”, explica o psicólogo hospitalar Henrique Redman, 34 anos, do 28 de Agosto. Um dos maiores hospitais de Manaus, a unidade está com três dos seus cinco andares ocupados por pacientes da Covid-19.
Além de não poderem fazer visitas, as famílias também não tinham mais contato direto com os médicos. “Eles passaram a receber as informações por meio de boletins médicos”, conta o psicólogo.
Para tirar todos desse apagão na comunicação, nasceu a ideia de fazer videochamadas entre os pacientes e as famílias. O projeto foi colocado em prática no final de abril, “quando o hospital parecia cenário de guerra”, conta Redman.
Maria Auzier de Souza, com 83 anos, se mudou em dezembro do interior amazonense para a capital, onde moram os filhos. Em abril, ela contraiu o novo coronavírus.
“A gente levou ela às pressas para o hospital. Ela estava muito mal e ninguém teve tempo de conversar com ela, de explicar porque ninguém poderia ficar lá, no quarto com ela”, conta Anne Caroline Carneiro, 30 anos, neta da Dona Maria.
“Minha avó morria de medo de ficar sozinha”, lembra a neta. “Nós queríamos que ela soubesse que ninguém a abandonou no hospital.”
Em uma videochamada breve na manhã do dia 29 de abril, Dona Maria não conseguiu dizer uma só palavra, mas interagiu com a neta. “Ela ficou muito emocionada”, lembra o psicólogo Redman.
“Vó, nós não te abandonamos”, tentou explicar a neta pela câmera do celular, garantido que toda a família iria levá-la de volta para casa quando a idosa tivesse alta.
Isso não aconteceu, infelizmente. Dona Maria morreu horas depois de ver os netos pela videochamada.
“Somos muito gratos ao Henrique. Ele nos proporcionou um último momento com a minha avó”, diz Anne Caroline, emocionada.
Dona Maria morreu pela Covid-19 no dia 29 de abril. Horas antes, conseguiu se despedir dos netos por meio de uma videochamada. — Foto: Arquivo pessoal
A dor do isolamento
O psicólogo diz entender a dor dos pacientes isolados de não poderem ver os familiares. Afinal, ele próprio está há quase um mês sem ver a filha de 11 anos pessoalmente, com medo de infectá-la. Para diminuir a distância com a filha, que está morando com a avó, os dois também passaram a se comunicar por videochamadas.
Ele conta que foi drástica a mudança na rotina do hospital com a chegada da Covid-19. “No final de abril, o hospital parecia cenário de guerra: todos os funcionários andando cobertos, exaustos, os pacientes isolados, o local lotado.”
Como o hospital não tinha nenhum macacão impermeável e viseira para dar ao psicólogo, equipamentos de proteção individual essenciais, Redman comprou os artigos do próprio bolso para poder entrar na área de isolamento de Covid-19 do hospital.
“Houve uma demora na distribuição dos equipamentos no hospital. Eu não podia esperar chegar o material para exercer minha profissão”, diz Redman.
Rotina
Todos os dias de manhã, Redman passa nos quartos dos pacientes da Covid-19 que estão lúcidos e oferece a videochamada. São mais de 15 por dia. Por causa da lotação, o funcionário dá prioridade aos que não têm ou não sabem mexer no celular.
O celular que ele usa para a tarefa também é seu aparelho pessoal. “A família vai na sala do serviço social do hospital. De lá, a assistente social telefona para o meu celular. Foi a maneira que encontramos para eu conseguir usar meu celular, mas sem expor meu número pessoal”, explica o psicólogo.
“As pessoas se emocionam muito durante a videochamada, principalmente os idosos”, conta ele, que agora tenta um meio de os familiares realizarem as videochamadas sem precisar ir ao hospital. Para isso acontecer, contudo, o psicólogo precisaria ter a disposição um celular do próprio local.
–:–/–:–
Hospital em Manaus adota visitas virtuais para pacientes terem contato com família
‘Cadê o Scoob?’
“Outro dia, por exemplo, eu fiz a videochamada para uma senhora que disse que não tinha contato com o único filho que tinha, que não precisaria ligar para ele. Mas quando eu liguei para o marido dela, ela perguntou: ‘Cadê meu filho?’”, lembra o psicólogo.
“Eu falei: ‘A senhora falou que não queria falar com o filho’. E ela me respondeu: ‘Não, esse filho é o Scoob, meu cachorro!’ Ou seja, se o marido estivesse em casa durante a chamada, ela poderia ver o Scoob também”, brinca Redman, lamentando o fato da senhora estar, agora, na Unidade de Terapia Intensiva (UTI).
“A rotatividade é muito grande. De um dia para o outro, já não encontramos mais os mesmos pacientes de coronavírus nos leitos”, conta o funcionário.
Redman lembra que, graças às videochamadas, já teve de festa de aniversário a pedido de casamento na enfermaria do 28 de Agosto.
“Seu Alfredo era diabético, 45 anos. Achávamos que ele morreria quando chegou no isolamento. Quando eu fiz a videochamada para a namorada dele, ele gritou para a enfermaria toda ouvir: ‘Meu amor, quando eu sair daqui, eu quero casar contigo, eu te amo!’ Foi uma festa aqui”, lembra.
Esperançoso de ir ao casamento de Seu Alfredo quando a pandemia acabasse, Redman recebeu a notícia dias depois que o paciente havia morrido.
O mesmo aconteceu com o Seu Ruy, 60 anos, que recebeu três bolos no dia do seu aniversário e teve festa na enfermaria por meio da videochamada. Logo após a comemoração de aniversário, contudo, Seu Ruy também faleceu.
Redman, que ficou conhecido no 28 de Agosto como “o cara do vídeo”, diz que o cenário é triste, mas que não deixa se abalar. “O objetivo é levar conforto para essas pessoas, independentemente do que venha acontecer”, afirma o psicólogo, honrado de poder oferecer esse adeus aos pacientes.