Quando o virtual se torna letal. Exibicionismo, autoafirmação e idiotas intelectualizados

Em cada homem de ânimo fraco e não muito certo do êxito de sua tarefa surge uma necessidade torturante de se convencer, de se animar e acalmar. Ele começa até a acreditar em sinais propícios. DOSTOIÉVSKI. Fiódor M. In: Notas de inverno sobre impressões de verão.

Atualmente encontramo-nos na Era da Informação. E nesta, através de redes virtuais de comunicação, é que assuntos da economia à política, da cultura à sociedade, e, não menos importante, da vida privada ao interesse público, ganham uma notoriedade ímpar (não entremos, todavia, no mérito da qualidade do debate). Assim como outros casos, o mundo virtual pode ser benéfico na mesma proporção que letal, dependendo unicamente de como é utilizado. A ambiguidade permanece, tanto mais que neste novo patamar impera uma frenética afetação de títeres made in Facebook.

Na sociedade atual, esta dubiedade virtual/real está de tal forma amalgamada que é impossível sequer cogitar uma distinção sociológica sem considerar a complexidade das relações sociais. Se o virtual d’outrora era alcançado, dentre outras opções, por meio de concentração espiritual (leia-se fé), hoje a tecnologia permite-nos que, em apenas um clique, um vasto leque de possibilidades se abra. E isto é excepcionalmente sublime, pois há uma comodidade ímpar para, dentro do conforto do lar, promover a insaciável busca pelo conhecimento e pelo prazer anímico.
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No entanto, mesmo com esta relativa praticidade e, sob uma visão existencialista-filosófica, muitos atualmente fogem à introspeção reflexiva ou, em outras palavras, evitam de todas as formas possíveis o que erroneamente chamam de tédio. Sejamos mais práticos neste ponto, pois, salvo exceções, pode-se ao final do dia inferir o seguinte: o que acrescentei em minha vida, em meu conhecimento hoje? Se não houver uma resposta (e tanto pior se isto persistir), fora então diagnosticado o sintoma de um grave problema. Não obstante, o remorso causado pela negligência consciente tende a repercutir seriamente nas relações socais e psicológicas, individual e/ou familiar. Em outras palavras, uma hora a conta é cobrada…

Na sociedade atual, facilmente encontraremos uma pessoa alienada na mais pura abstração de “se fazer bem vista para os outros”. O exibicionismo sempre existiu, assim como sempre existirá; e também disto decorre a exponencial propagação de idiotas intelectualizados. Expliquemos: hoje a velocidade da informação é a mesma de um clique, ou seja, é de uma agilidade espectral, quase indescritível, com a qual podemos obter uma informação em qualquer parte dos seis continentes.

Esta mesma surpreendente agilidade é a razão da efemeridade e volatilidade com que muitos constroem não apenas o seu cotidiano, mas muitas vezes moldam sua vida. Por exemplo, hoje as redes sociais já cumprem amiúde uma brumosa função educativa que, em muitos casos, supera os responsáveis ad hoc desta função. São recursos educativos, sim; desde que não se confie unicamente nas capacidades, muitas vezes inexistentes, do autodidatismo.

Para as pessoas que sofrem de “preguiça mental”, ler e informar-se verdadeiramente de algo é tido por chato, por enfadonho. É melhor, na conjuntura atual, assistir um vídeo; é mais didático, não é? Didatismo exacerbado a tal ponto que infantiliza extremamente, formando seres relativamente incapazes em quase tudo, os quais carecem de eterna tutela. Se a era da informação, através de seus meios (celulares, smartphones, tablets, etc.), forneceu acesso imediato e sem pré-requisito, por parte do cidadão comum, ao mundo global como um todo, dando-lhe voz, é compreensível que condutas pessoais sejam facilmente induzidas e/ou manipuladas, especialmente em termos políticos. Vide, para todos os efeitos, os exemplos da praticidade consumista contida em one click.

Resulta desta conjuntura um hediondo exibicionismo generalizado, uma preocupação com a estética superficial, um “belo e sublime” negligenciado, sem profundidade. Muitos coetâneos querem opinar, querem demonstrar “notório saber”, especialmente quando se trata de política. É justamente por esta razão que não é raro encontrarmos analfabetos políticos vociferando em exaltada verborragia os mais cômicos delírios. É nas redes sociais que podemos ver um idiota intelectualizado que, geralmente por não gostar de ler, assiste vídeos, absorve abjetos chavões, vê imagens (não sabe se manipuladas ou não), e é com base neste risível e cômico modus operandi que contesta um especialista (não importando se este dedica/dedicou parcialmente ou integralmente sua vida à pesquisa deste ou daquele tema, seja em política ou em qualquer área do conhecimento humano).
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Por esta razão que uma criança pode facilmente (e publicamente) contestar um douto, a qualquer momento. São no mínimo mentalmente infantis aqueles que aqui chamamos de idiotas intelectualizados, mas, em contrapartida, são deveras perigosos. Aliás, este comportamento foi magistralmente registrado por Quiroga, no seu conto A galinha degolada. Estes idiotas, é claro, estão conscientes de sua fragilidade, por isso que não são abertos ao diálogo (dialogar o quê?). Quanto maior a necessidade de alguém expressar seu fanatismo (seja religioso, político ou esportivo), maior será a propensão à intolerância de opiniões contrárias às suas. Aliás, é por meio da sua experiência de vida inigualável (no meu tempo não era assim) que eles sabem quem será o “mito” presidente em 2018 (sim, eles ainda creem em salvadores da pátria). Há sempre um problema perene e uma culpa em busca de um culpado; uma vítima sendo culpada pela violência que sofreu…

Questionados, no sentido de como estes seres vegetativos detém tanto “saber”, certamente, não responderão. Conhecimento de causa, profundidade e humildade, além de adjetivos corretos, fogem à compreensão destas pessoas. Em resumo, caro leitor, porque são perigosos? Estas pessoas, na maioria das ocasiões, votam. E quem vota, elege. Além de que, direta ou indiretamente, fomentam a intolerância sociopolítica e (o que é pior), geralmente são favoráveis às relações opressivas de dominação, com o clássico e palpável caso da dominação masculina, como bem ressaltou Bourdieu. Agem mais por instinto. Aliás, um abjeto e asco instinto primitivo, inclusive sexual.

Os bares, restaurantes, pubs, etc., já incorporaram esta realidade virtualizada, pois sempre há um espaço alternativo para que sejam registradas as selfies. Não seria isto altamente sugestivo? Exemplo desta situação pode ser verificado no simples fato de alguém ficar por algumas horas (ou minutos), sem acesso à internet. Ela é dinheiro, é atrativo no comércio. Inclusive, há os que abrem mão dos familiares (esposas, maridos, filhos, etc.), por conta desta conjuntura; mas há também aqueles que os perdem por pura negligência. Isto não é mera crítica, é a percepção da conjuntura sociológica deste início de século, ou melhor, de toda uma era sem precedentes na Humanidade.

O problema consiste no fato de que a maior parte das iniciativas virtualizadas, inclusive as sentimentais, são superficiais e efêmeras, enquanto que pouco consiste em essência. Às vezes, podemos encontrar certo respeito ao verdadeiro conhecimento, mas tudo se limita ao curtir, uma vez que apropriar-se dele é considerado por este público como algo enfadonho, chato, cansativo – por isto, amigo leitor, se chegou até aqui, está de parabéns. Obviamente que focar na superficialidade é mais rápido, na mesma proporção em que é volátil.

Veja-se outro aspecto fundamental realçado, além dos idiotas intelectualizados, na necessidade de exibicionismo, e este, por sua vez, servindo debilmente como um instrumento de constante necessidade de autoafirmação. Na maioria destes casos, as publicações virtuais são de estilo autoajuda, o que é deveras motivo de preocupação, por dois motivos: (1) ausência de personalidade e, consequentemente, (2) fomento às doenças e abalos de viés depressivo. Não é necessário ser um profissional especializado para compreender os nocivos efeitos psicológicos presentes no virtualismo (neste caso, mais real do que nunca), com relação ao montante exponencial de pessoas socialmente inseguras, que buscam acreditar em quaisquer pífios sinais, seletivamente propícios.

Um exemplo vale mais do que a descrição a fundo do problema. Vamos lá: especialmente em grupos de WhatsApp, mas também nas redes sociais como um todo, qual seria a razão de ter uma mesa farta, com atavios diversos, de uma janta ou almoço, se a mesma não pudesse ser utilizada como motivo de exibição perante os demais? O “é o que temos pra hoje” demonstra gritantemente duas coisas: (1) a insegurança de quem age assim, por indiscutivelmente necessitar da opinião e legitimação alheia e, justamente por isto, (2) assegura a futilidade do esteticismo banal, no exato momento em que preocupa mais com “o bonito para os outros” do que aquilo que seria o bom para si. A simples tomada de consciência desta realidade já é, em si, uma proposição.

Percebe-se que há uma evolução nas formas de demonstrações de variados ethos. Os limites entre o útil e o fútil de um recurso virtual confundem-se no exato momento em que seu uso torna-se duvido: exibicionismo. Os mais conscientes sabem que estamos diante de um grave problema de nossa era, o qual não considera sexo, idade, cor ou classes sociais. O mundo virtual conquista o âmago de muitos com uma facilidade muitas vezes superior à educação advinda do ambiente familiar. Em outras palavras, algumas vezes observa-se uma colossal distância entre aquelas pessoas que estão fisicamente próximas, em prol de uma virtual aproximação.

Ademais, estar informado não é sinônimo de conhecimento ou mesmo de interpretação correta das informações disponíveis. Propaga-se hoje um público relativamente incapaz de raciocinar, de dialogar e compreender assuntos que, em muitas ocasiões, são demasiados simples. Este público perde sua razão de existir (ah, o existencialismo é algo caríssimo), no exato momento em que se vê fora do alcance virtual (por mais que não lhes falte os suprimentos básicos à vida, ainda que com relativo conforto). Em uma conjuntura como a atual, não seria o mundo virtual, ou melhor, o seu imprudente usufruto, tão nocivo quanto tantos outros vícios lícitos (ou ilícitos)? É de se pensar…

*Marconi Severo é Cientista Social & Político e colaborou para Pragmatismo Político.

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