Para quem deseja dar uma sacudida nessa familiaridade enganosa, o livro “A Música no seu Cérebro”, do psicólogo e neurocientista americano Daniel Levitin, é um achado e tanto
Apesar de breve, a obra funciona tanto como uma introdução bastante didática à teoria musical quanto como apresentação dos desafios de estudar o cérebro humano. Não é pouca coisa, mas o surpreendente histórico profissional do autor ajuda.
Levitin abandonou seu primeiro curso universitário para tocar numa banda e, depois que o grupo terminou, passou uma década atuando como produtor musical nos Estados Unidos, tendo a oportunidade de trabalhar com engenheiros de som que recebiam artistas como Santana e Whitney Houston em seus estúdios. A curiosidade que ele tinha sobre questões como os detalhes finos da percepção musical, a natureza do talento e as origens da criatividade fizeram com que ele voltasse à universidade e iniciasse sua carreira acadêmica.
Como o especialista aponta, nas últimas décadas emergiu uma desconexão curiosa entre o ato de ouvir música e o de produzi-la, ao menos na maior parte do mundo. Ficou tão fácil ter acesso a “conteúdo musical” (para usar a linguagem anódina das plataformas virtuais) que a imensa maioria das pessoas apenas consome música passivamente, sem nem sonhar em tocar um instrumento ou mesmo cantar (fora do chuveiro).
Não foi assim que a coisa funcionou ao longo da maior parte da história da nossa espécie, no entanto. Tudo indica que a nossa predileção instintiva por ritmos e melodias é pelo menos tão antiga quanto a origem do Homo sapiens e, quase sempre, era algo que acontecia em contextos comunais ou familiares. Quem ouvia música também quase sempre era capaz de fazer música -cantando, batendo os pés no chão, tocando instrumentos simples ou mesmo mais elaborados.
Essa introdução já é o suficiente para mostrar qual o grande tema do livro: como a música funciona uma janela privilegiada para entender a capacidade de abstração do cérebro humano.
De fato, essa é a grande mágica. Um exemplo banal: como diabos conseguimos reconhecer sempre a indefectível melodia de “Für Elise” (a música de Beethoven que antigamente era tocada por todo santo caminhão do gás Brasil afora), seja quando é gerada por um pianista habilidoso num instrumento bem afinado ou pelos sintetizadores toscos de um celular antigo?
Entre um extremo e outro de competência musical, praticamente tudo muda, em especial o timbre (basicamente o lado qualitativo do som, que vem da maneira como ele é produzido -pelas cordas vocais de uma pessoa ou pelas cordas de um violão, por exemplo). Mesmo assim, o cérebro consegue captar a “essência” da melodia a partir do sistema de inter-relações entre as notas (grosso modo, a variação entre notas mais graves e mais agudas ao longo do tempo) e cravar: sim, isso é “Für Elise”.
A música também abre portas importantes para a compreensão dos elos entre expectativas, memórias e emoções. É bem sabido que certas combinações de notas musicais são capazes de provocar reações emocionais distintas, e que isso ocorre de modo mais ou menos independente da cultura à qual o ouvinte pertence.
Ao que tudo indica, é o contexto emocional que faz certas músicas se tornarem tão fáceis de recordar, assim como acontece com outras memórias de tipo não musical. O porquê de fenômenos como esses terem se tornado tão importantes para todas as culturas humanas ainda é um mistério. Mas o livro é uma excelente maneira de chamar a atenção para a complexidade que se esconde por trás do mais simples dos refrãos.
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A MÚSICA NO SEU CÉREBRO: A CIÊNCIA DE UMA OBSESSÃO HUMANA
Preço: R$ 69,90 (312 págs.); R$ 38,02 (ebook)
Autor: Daniel J. Levitin
Editora: Objetiva
Tradução: Clovis Marques
Avaliação: Muito bom