Lembranças de um outro Brasil

Jornal do Brasil
PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.*

Hoje quero fazer a minha pequena homenagem ao ex-presidente Lula. Muitos já se manifestaram sobre ele, nos últimos dias, em depoimentos emocionantes. O que poderia eu acrescentar a tudo que já foi dito? Talvez relatar brevemente episódios que testemunhei e que revelam algumas das muitas qualidades de Lula.

Um desses episódios ocorreu em 2009, quando ele resolveu emprestar dinheiro ao FMI, algo sem precedentes para um país como o nosso. Na época, eu era diretor-executivo, pelo Brasil e outros países, no FMI. Desde 2006, o Brasil vinha acumulando reservas internacionais em ritmo acelerado e estava em posição forte. Graças a isso, o país conseguiu atravessar, com relativa tranquilidade, a aguda crise que irrompeu em 2008 nos sistemas financeiros dos EUA e da Europa. Os países desenvolvidos, apavorados com a instabilidade financeira, queriam reforçar rapidamente o poder de fogo do FMI, criando substanciais linhas de crédito para a instituição. Pediram aos países emergentes mais fortes, inclusive o Brasil, que ajudassem.

O problema é que aportar recursos assim não daria poder de voto adicional ao Brasil no FMI. A reforma da instituição caminhava devagar. Havia sido aprovada a reforma de quotas e governança, que melhorara um pouco a posição do Brasil e de outros países em desenvolvimento em termos de poder de voto. Mas a segunda etapa, que prometia avanços mais expressivos, estava ainda em negociação.

Manifestei ao governo brasileiro a minha avaliação de que seria melhor obter avanços em termos de reforma da governança do FMI antes de fazer qualquer empréstimo. O presidente Lula não aceitou as minhas ponderações e autorizou a abertura de uma linha de crédito de US$ 10 bilhões ao fundo.

Não demorou muito para que ficasse claro, para mim, que ele estava certo e eu errado. O tino político do presidente valeu mais do que os cálculos do economista. O impacto da decisão foi enorme, tanto fora como especialmente dentro do país. O Brasil, país devedor contumaz, e às vezes relapso, estava agora na condição de credor da mais importante instituição financeira multilateral. Foi um tiro de canhão no nosso complexo de vira-lata.

Além disso, a operação se revestia de características especiais. O FMI é um risco de crédito sólido, a remuneração não era muito inferior à rentabilidade média das nossas reservas internacionais e qualquer desembolso feito ao abrigo da linha de crédito tinha liquidez total assegurada pelo FMI e poderia, portanto, continuar sendo contabilizado como parte das reservas brasileiras. Mudava a composição, não o nível das reservas.

Esse episódio se insere em um movimento mais amplo de fortalecimento da posição internacional do Brasil, iniciado por Lula já no seu primeiro mandato. Desde o início, ele revelou um talento especial para a articulação internacional. Em poucos anos, ele se tornou conhecido e respeitado no mundo inteiro por governos das mais variadas tendências.

Para a surpresa geral, estabeleceu, por exemplo, uma relação cordial com o presidente dos EUA, George W. Bush. Isso permitiu que Lula desempenhasse um papel-chave na transformação do G20 – que inclui os principais países emergentes – no principal foro para cooperação econômica internacional em substituição ao G7, composto exclusivamente pelos principais países desenvolvidos. Desde a primeira reunião de líderes do G20, em Washington, Lula foi uma presença marcante.

Quando me lembro dessa época fico com a sensação de estar tratando de outro país, não deste em que hoje vivemos. Com Lula, o Brasil andava de cabeça erguida. Sem arrogância, sem bravatas, mas sem a subserviência que caracteriza grande parte da elite brasileira.

Outro traço notável de Lula: o poder nunca lhe subiu à cabeça. Passei os últimos dez anos no exterior, mas sempre que vinha ao Brasil procurava fazer-lhe uma visita. Numa delas, aconteceu algo curioso. Ao fim do nosso encontro, ele me perguntou se eu não gostaria de participar da reunião com catadores de lixo. Vieram lideranças do Brasil inteiro, homens e mulheres, pessoas articuladas e inteligentes, representantes de um movimento social organizado. Lula conhecia todo mundo e mostrou impressionante domínio dos detalhes do trabalho dos catadores, da história do movimento e das suas reivindicações.

Mas o que mais me ficou na lembrança foi a natureza da relação entre Lula e as lideranças de um movimento popular. A relação era de respeito, mas não de veneração e muito menos adulação. As lideranças questionavam, sem constrangimento, algumas das afirmações de Lula, que aceitava as contestações com toda naturalidade. Era o diálogo franco e substantivo de um líder político natural, autenticamente democrático, com integrantes da sua base social. Saí dali energizado, confiante de que o Brasil estava entrando em nova etapa da sua história.

* Economista, foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICs em Xangai, e diretor-executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países