Iludidas pelo narcotráfico, mulheres pobres lotam presídios de MS
É domingo em Campo Grande e o relógio marca pouco mais de 5 horas. Enquanto muitos ainda nem saíram da cama, a empregada doméstica Ester Medeiros, de 57 anos*, se prepara para mais um dia que embora nunca imaginasse ou quisesse, se tornou rotineiro na família há sete meses.
Caprichosa, ela vai pra cozinha preparar uma massa que em alguns minutos vai virar um bolo de milho. O desejo era poder fazer mais, só que levando em consideração os poucos recursos que dispõe, isso é até mais do que pode proporcionar.
O cheiro que invade a casa e um palito colocado dentro do bolo para verificar a textura avisam: está pronto! Ela espera a assadeira esfriar e com delicadeza, corta tudo em pequenos pedaços que em seguida são colocados em um saco transparente. Tudo é feito com o máximo de cuidado para não ter problemas na revista. “Gosto de fazer no dia, acho que fica mais gostoso assim”, conta.
Ester toma um banho, põe uma roupa confortável e passa um batom de tom avermelhado, já que segundo ela, a vaidade não pode ser deixada de lado. A empregada doméstica então dá as últimas coordenadas para a filha mais velha que vai passar o dia em casa cuidando do neto, e se apressa para pegar o ônibus que passa a duas quadras de sua casa, no Bairro Los Angeles. “HOJE É DIA DE VISITAR MINHA CAÇULA NO PRESÍDIO”.
Aos 23 anos, Alice Medeiros*, filha de dona Ester, resolveu ‘dar uma força’ para o namorado, preso por roubo e tráfico de drogas. De quebra, a jovem ainda ganharia ‘um troco’ para ajudar com as despesas do filho, hoje com 5 anos recém completados. O dinheiro faria toda a diferença e mesmo diante do medo, a proposta aparentou ser boa.
Uma mala com maconha teria São Paulo como destino, no entanto, ela não conseguiu nem atravessar a fronteira de Mato Grosso do Sul com o estado vizinho e ‘caiu’ em uma abordagem da PRF (Polícia Rodoviária Federal). “Foi lavagem cerebral o que ele fez com ela, só pode. Hoje ela tá arrependida e chora, mas já não tem muito o que fazer”, desabafa a mãe ao falar na proposta feita pelo genro, proposta essa que resultou na prisão da filha.
A dedicação ao namorado e o sonho da vida melhor se transformaram no pesadelo de Alice e de sua família, que agora, além de vê-la presa, tiveram que assumir a responsabilidade de criar uma criança com mãe e pai presos por tráfico de drogas.
A realidade de Alice não é um caso isolado e isso é atestado pelo delegado João Paulo Sartori da Denar (Delegacia Especializada de Repressão ao Narcotráfico). Após a prisão, a delegacia onde ele atua é o primeiro lugar para onde vão as mulheres flagradas traficando, e segundo o investigador a história constantemente se repete. “Isso é muito comum. Primeiro nós prendemos o marido por tráfico e quando está encarcerado, ele atrai a mulher para ser o braço dele na rua, seja para armazenar, vender ou transportar a droga”, explica.
Para o delegado é difícil traçar um perfil dessas mulheres, exceto por dois fatores que dificilmente mudam: presas associadas pelos maridos e vivendo em situação de pobreza e vulnerabilidade. “As maneiras de venda, transporte, quantidade e tipos de drogas são variadas, também não há idade fixa. O que sabemos é que é comum essas mulheres serem pobres, com pouco estudo e estarem fazendo favores para maridos presos”, conta.
‘Prova de amor’
Luciana Azambuja, secretária estadual de políticas públicas para as mulheres, confirma a realidade apontada pelo delegado e revela que as ‘mulheres do tráfico’ compõe uma alarmante estatística. De acordo com ela, das mais de 1000 mulheres reclusas nas unidades prisionais de Mato Grosso do Sul, cerca de 90% foram presas por tráfico de drogas. Destas, a maioria aliciadas por companheiros ou ex-companheiros. São as chamadas ‘mulas’.
“É muito raro casos de mulheres que entraram para o mundo do tráfico de drogas porque quiseram. Algumas foram motivadas pelo desespero de não conseguir um espaço no mercado de trabalho, associado à pobreza. Por isso, viram nisso a única alternativa para ter dinheiro rápido. No entanto, na grande maioria dos casos elas foram iludidas pelos companheiros”, explica Luciana.
A secretária esclarece que na maioria das vezes o vínculo afetivo é a arma usada por homens na hora de aliciar as companheiras no mundo do crime. São relacionamentos abusivos onde o amor é colocado em xeque e a prática criminosa a condição estabelecida para que o amor seja provado.
“É a velha história da prova de amor que sempre se repete. Eles convencem as companheiras a levar a droga dizendo que depois vão ficar juntos, desenham toda uma história com final feliz e boas condições financeiras, mas se a mulher acaba presa ela nem ao menos recebe visita”, revela.
A prova disso, conforme Luciana, são os domingos de visita nos presídios. “Nos masculinos os visitantes são os mais variados integrantes das famílias, já na penitenciária feminina quem visita é basicamente as mães das presas. É é somente aí, quando já é tarde demais, que essas mulheres se dão conta de que optaram pelo pior caminho”, revela.
Perfil das presas
Dados da Agepen (Agência Estadual de Administração do Sistema Penitenciário) revelam que o total de mulheres presas em Mato Grosso do Sul é de 1054, quando a capacidade das unidades é de 871. Ou seja, atualmente os presídios femininos operam com quase duzentas internas a mais do que suportam.
Do total, 56% não concluíram o ensino fundamental, 13% terminaram apenas o ensino fundamental e somente 9% concluíram o ensino médio, Dados que em tese, comprovam a dificuldade dessas mulheres em se enquadrar no mercado de trabalho e ter bons salários.
As faixas etárias de 18 a 24 anos e de 35 a 45 anos lideram o ranking empatadas com 26% do total de internas. Em segundo lugar com 19% do total aparecem as presas com faixa etária entre 25 e 29 anos. Depois das prisões por tráfico de drogas que lideram com folga a lista dos tipos de crimes cometidos pelas presas no Estado, aparecem pontuados crimes de homicídio, roubo e outros.
Levantamento feito pelo Depen (Departamento Penitenciário Nacional) em 2015, revelou que Mato Grosso do Sul é o único Estado que não possui internas em unidades mistas, tendo presídios exclusivamente femininos. Conforme o Depen o Estado também possui proporcionalmente o maior número de presídios femininos do País.
As unidades estão nas cidades de Campo Grande, Corumbá, São Gabriel do Oeste, Três Lagoas, Rio Brilhante Dourados, Ponta Porã e Jateí.
Procure ajuda
A secretária Luciana afirma que um dos fatores que ainda dificultam a redução de casos como o de Alice e dona Ester é que ainda hoje, muitas mulheres não conseguem romper a barreira do silêncio e procurar ajuda. Segundo ela, existem órgãos que auxiliam mulheres em estado de vulnerabilidade e as encaminham para a área de atendimento necessária, seja saúde, educação, emprego, moradia ou assistência social. Um desses órgãos é o Cras (Centro de Referência de Assistência Social), que oferece orientação psicossocial gratuita e encaminhamento necessário.
O Ceam (Centro Especializado de Atendimento à Mulher) dispõe de uma equipe de psicólogas, assistentes sociais e pedagogas, além de oferecer lanche e vale transporte para que as mulheres se desloquem até a unidade onde são atendidas.
“É preciso que as mulheres peçam ajuda e entendam que o crime não compensa. Pode até parecer repetitivo dizer isso, mas independente da oferta de dinheiro fácil e vida de luxo, isso vai afastá-la da família, filhos e a privar do bem maior que é a liberdade. É preciso pensar muitas vezes antes de ceder a um assédio, ao aliciamento.