Médica Ana Claudia Quintana Arantes também observa uma mudança nos rituais: com funerais restritos a poucas pessoas na pandemia, transmissões on-line estão oferecendo uma chance de participação e solidariedade no momento da despedida.
Por Carolina Dantas, G1
Para cada vida que se vai, há um número de pessoas que vivenciam a perda. Um ano depois da primeira vítima, já se somam 362 mil mortos pela pandemia do coronavírus apenas no Brasil. Uma rápida olhada na timeline do Facebook e é possível ter a sensação de que o luto anda mais presente no nosso dia a dia.
Ana Claudia Quintana Arantes, autora do livro “A morte é um dia que vale a pena viver” e referência em cuidados paliativos, diz que o momento é de um grande choque. “As pessoas não conseguem chorar todas as mortes ao mesmo tempo. É uma certa incredulidade, você não acredita no que está acontecendo, não é possível”.
Ela é médica formada pela USP com pós-graduação em psicologia. Sua especialidade está em cuidar de pacientes que não têm mais perspectiva de cura e precisam viver os dias que ainda restam da melhor maneira possível.
Quintana Arantes conversou com o G1 sobre a falta de uma despedida própria em tempos de funerais restritos a poucas pessoas, sobre conseguir abstrair o momento difícil e o processo de luto – que em algum momento da vida todos devem viver.
G1 – Como lidar com essa constante sensação e referência à morte nesses tempos?
Ana Claudia Quintana Arantes – O que eu posso te dizer é que a gente não tem escolha. Penso que o caminho para enfrentar isso é reconhecendo que está acontecendo. E, a partir desse conhecimento, tomar as devidas providências: qual lugar nós vamos ocupar dentro dessa escala de complexidade. Você quer ajudar ou você é uma das pessoas que precisam de ajuda? Ou ainda: você se considera capaz de ser alguém que vai atrapalhar, que vai piorar tudo isso?
G1 – Há ainda aquelas pessoas que não têm conseguido se despedir, ter um ritual de despedida, por causa das restrições de funeral.
Quintana Arantes – Eu tenho ouvido muito isso também, mas deixa eu te dizer uma coisa: quando tiveram a oportunidade de se despedir, as pessoas não se despediam. Vamos partir desse princípio. Não é que virou agora a necessidade mundial de se despedir dos seus familiares que estão morrendo. Isso não existia antes.
A situação da [falta de uma] despedida trouxe à tona uma falha do nosso dia a dia como seres humanos: a gente não conversa sobre a morte. Se você conversasse com seu familiar sobre a morte, você saberia o que essa pessoa gostaria de viver ou não viver nesse momento.
Você poderia ter falado com ela na hora da ida para o hospital: “Olha, faz sua parte, faz o melhor que você puder e eu vou fazer o melhor que eu puder daqui. Leva meu coração, meu amor com você, e eu vou ficar com seu amor comigo”. Não é exatamente uma despedida, mas é uma clareza da bagagem de mão que você está levando para essa internação.
A especialista em cuidados paliativos Ana Claudia Quintana Arantes — Foto: Divulgação
G1 – Como a falta de despedida impacta no processo de luto?
Quintana Arantes – Eu perdi um grande amigo da faculdade por Covid na semana passada. E perdi outro hoje [segunda, 12], um amigo que é um artista plástico maravilhoso, foi meu professor de arte. E arte para mim é um jeito de respirar. Então me desligaram um aparelho muito vital para mim hoje.
Na semana passada, teve o funeral do meu amigo da faculdade, em Fortaleza, e esse funeral foi transmitido via Instagram. Assisti ao funeral inteiro dentro do meu carro e chorei tudo que eu podia dentro do meu carro. Não recebi nenhum abraço, mas eu tive a benção de poder estar com a família dele de alguma forma. Em tempos normais eu não poderia ter ido até Fortaleza. Teria que ficar sem saber de nada, sem participar de nada.
Então os rituais estão redimensionados para a nossa realidade. O fato de você não ter 10, 15, 100 pessoas no funeral não quer dizer que você não possa viver isso de uma maneira ritualizada. Você vai ritualizar de uma forma possível.
O que é mais triste nesse momento são as pessoas que estão internadas, famílias inteiras internadas, e aí, de cinco pessoas que estão internadas, três falecem. Isso aconteceu com uma pessoa que trabalha comigo. Quem sobreviveu precisa receber a notícia de que aquelas três pessoas morreram. Não teve despedida, não teve ritual, não teve funeral e ainda tem uma necessidade de você ter força para continuar vivo, para se restabelecer.
G1 – Quem respeita o isolamento tem uma compreensão diferente do luto e do momento em que estamos vivendo?
Quintana Arantes – Se você escolhe respeitar, você está dando valor não só a sua própria vida, mas à vida de outras pessoas também. Muita gente nem tem essa escolha: pessoas que vão trabalhar, que se colocam em risco e voltam para casa. Não vão para a balada, não vão para o bingo ou para o cassino. Essa capacidade de respeitar o momento que nós estamos vivendo talvez não seja da maioria, né? Se fosse a maioria, a gente estaria melhor.
Acho que tem pessoas que perderam até familiares, mas não entenderam ainda. É realmente um teste gravíssimo de compreensão, deve ser um problema de neurotransmissor deficiente, de falta de ocitocina [substância conhecida como hormônio do amor]. A ciência que responda isso daqui a alguns anos enquanto a gente só tem que buscar o dever ético de sobreviver.
G1 – O medo de morrer nos últimos tempos está mudando o comportamento das famílias?
Quintana Arantes – É um choque tão grande, que tem momentos em que essas pessoas estão anestesiadas. Elas não conseguem chorar todas as mortes ao mesmo tempo. É uma certa incredulidade, você não acredita no que está acontecendo, não é possível. Hoje teve um pedido de socorro de uma senhora que perdeu um familiar e estava tendo alucinações de que o familiar dizia que estava vivo.
A fragmentação da consciência das pessoas que ficam é uma coisa aterrorizante de acompanhar, às vezes você fica mudo. Você não sabe o que dizer.
G1 – O que seria essa fragmentação da consciência durante o luto?
Quintana Arantes – Você não sabe quem você é, aonde você está, o que aconteceu exatamente, você não sabe o que que é futuro, o que é passado, o que é presente. Você destrói aquilo que você acreditava que era real. Não é que você destruiu: a doença destruiu, a perda destruiu. Você fragmentou essa consciência. Você fica em cacos, cacos de um espelho. Não se sabe direito qual é a imagem que se forma. E, em cada pedacinho do espelho, você consegue se ver. Mas, em cada caco, há muitas opções de reação e você não sabe mais como juntar os cacos nem pra que serviam antes.
G1 – Como diminuir a dor?
Quintana Arantes – Cuidando uns dos outros. É pelo cuidado, é pelo apoio. Um grande amigo me contou a respeito de uma senhora que liga para todas as pessoas que ela sabe que moram sozinhas. Todos os dias ela tem uma lista. Ela não faz parte de nenhum grupo de ajuda, apenas tem essa ideia. Ela liga para cinco, seis pessoas. Só para ver como elas estão, o que estão fazendo… “Lembrei de você hoje. Como é que você está?”
Para mim está muito claro que a missão dessa doença é trazer para nós a consciência do cuidado. Uma amiga que trabalha num hospital disse que encontrou uma cama vazia ao chegar para o plantão. Ela me ligou, quis me contar isso. Uma cama vazia. O significado para um médico, um profissional de saúde, de ver uma cama vazia na pandemia. E essa cama ficou vazia o dia inteiro. É esperança se realizando.
G1 – Precisa viver a morte, o luto depois de uma perda, 100% do tempo? Pode tentar abstrair?
Quintana Arantes – Não precisa se distrair. As pessoas dizem assim: “Ai, fala de outra coisa”. A morte é um problema dos vivos, já dizia o [sociólogo alemão] Nobert Elias. Então é da nossa conta. Você fala da morte para você viver uma vida que vale a pena. Alguém se pergunta: “As pessoas têm medo da morte?” Não tem. Esse monte de gente corajosa aí andando sem máscara, ninguém tem medo da morte, não. Se tivesse, estava em casa.
G1 – Você acha que o Brasil vive um luto coletivo? Existe isso?
Quintana Arantes – A minha impressão do que a gente está vivendo no país é o luto da morte da vergonha na cara de tantos brasileiros. Então, esse é o luto coletivo. É o luto do caráter das pessoas de se importarem, de perder a sua determinação de consertar o mundo, né? E poder ajudar as pessoas. Às vezes essa determinação se esvai e a gente acha que não vai conseguir conceber as pessoas morrendo sem oxigênio, morrendo sem remédio, sendo intubada sem anestésicos, sem analgésico, sem sedativo.
G1 – Há o que fazer num dia em que tudo parece muito ruim?
Quintana Arantes – Só aceitar. Tem dia que eu estou sem esperança? Tenho. E eu falo: hoje não. Só que todas as minhas dores não são para sempre. “Nunca mais”, “para sempre será assim”, “será que nunca mais a gente vai sair daqui?”. Se você morrer amanhã, realmente, nunca mais. Agora, se você conseguir ficar vivo, talvez não tenha esse tempo de nunca mais para você experimentar. Essa oscilação faz parte. É maré: maré alta e baixa. E você precisa respeitar esse ritmo, o seu próprio ritmo. Tem momento que você está com medo? Ok, está com medo. Não é pra sempre. Amanhã você estará corajosa. Hoje você está sem esperança? Está. Então, hoje você pede ajuda.