SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A pandemia da Covid alterou a frequência e a circulação de outros vírus respiratórios comuns em crianças e adultos, como os que causam resfriados e gripe.
O período de reclusão nos últimos três anos mudou a sazonalidade desses patógenos, que em geral era bem estabelecida, nos períodos de outono e inverno. Com isso, hospitais enfrentam surtos fora de época de doenças respiratórias.
“A Covid desorganizou muito a sazonalidade [dos outros vírus] e mesmo com as estações, está fora do padrão habitual. É difícil agora prever o protagonismo, isto é, qual vírus será dominante em cada época”, explica o pediatra e diretor de imunizações da Sociedade Brasileira de Pediatria, Renato Kfouri.
Kfouri lembra que o período em que as escolas ficaram fechadas acabaram atrasando esse primeiro contato dos bebês com vírus respiratórios em geral, não só o coronavírus.
Embora, de um lado, foi positivo pois houve um período sem a ocorrência de problemas respiratórios, de outro o atraso na construção de uma imunidade fez com que as crianças fossem mais suscetíveis a esses diferentes agentes.
“Mais importante do que qual o vírus dominante é quando aquela criança faz a primeira infecção, e isso nós vimos que mudou bastante na pandemia”, diz.
É o caso de João Lucca, que com quase três meses de idade foi atendido no Sabará Hospital Infantil com quadro respiratório no início de dezembro. Ele foi diagnosticado com bronquiolite causada por vírus sincicial respiratório (VSR), que pegou de seu irmão mais velho, Pedro Henrique, de 2 anos.
“Fui procurar os sintomas e aí descobri que poderia ser uma bronquiolite. A pior fase foi no quinto dia, que é quando os médicos chamam de pico da doença, mas agora ele está se recuperando e vai ter alta em breve”, disse a mãe de João Lucca, Joelma dos Santos, 40.
Além da mudança na sazonalidade, o frio fora de época também contribui para isso, mas ainda é difícil prever quando o cenário irá voltar ao normal. “No final de dezembro de 2021 tivemos epidemia de influenza [causador da gripe], depois vírus sincicial, depois em setembro de novo a gripe. Começa a ter uma sazonalidade mais conhecida, mas mesmo assim ainda é muito precoce”, diz Kfouri.
No Sabará, os casos de VSR explodiram nos meses de outubro e novembro, período que é considerado fora da estação. De 27 de novembro a 3 de dezembro, um terço dos exames realizados teve diagnóstico positivo para VSR.
“Todos os anos vivemos situações absolutamente dramáticas no período de sazonalidade dos vírus respiratórios, com falta de leitos, a demanda suplantando a oferta, e por serem sazonais não são mantidas as estruturas por muito tempo. E sem essa previsibilidade ficou ainda mais bagunçado”, conta Daniella Bonfim, diretora técnica do hospital.
É comum que crianças pequenas peguem de outras crianças mais velhas vírus frequentes na infância, como adenovírus, rinovírus e o próprio VSR, que, embora tenham nas mais velhas manifestação clínica relativamente leve e como uma gripe, nos bebês podem gerar complicações.
Foi o caso de Gabriela, de sete meses, que foi internada na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do Sabará no final de novembro com um quadro de bronquiolite. Provocado por uma coinfecção de adenovírus e VSR, Gabriela e seu irmão mais velho Pedro, de três anos, que também apresentou sintomas gripais, se infectaram junto com outras crianças na escolinha.
“Começou com ele, com sintomas nos olhos e nos ouvidos. Foi difícil porque tivemos que vir com duas crianças pequenas para o hospital, com quadros diferentes, já que ela ficou com dificuldade respiratória e nele foi mais uma otite”, relata o pai e analista de projetos, Lucas Pegorari Espósito, 33.
Apesar de parecer preocupante, o infectologista e gerente médico do Sabará, Francisco de Oliveira Júnior, lembra que contrair infecções nessa idade é comum. “Essa relação de escolas infantis com o aparecimento de vírus respiratórios sempre foi bem conhecida, a diferença é que com o isolamento na Covid, e também com o uso de máscaras, conseguimos retardar esse processo”, explica.
Porém, Júnior alerta para a possível alta de casos de síndromes respiratórias após as festas de final de ano, como ocorreu em anos anteriores. “É bem provável que a gente veja uma recrudescência”, lembra.
Por isso, as medidas de proteção devem continuar mesmo após o período de emergência da pandemia. “É muito importante reforçar as medidas de higiene e de proteção nesse momento, para ao menor sinal gripal, evitar que aquela criança pequena ou bebê tenha contato com alguém com síndrome respiratória”, afirma Bonfim.
MONITORAMENTO DE VÍRUS
No Brasil, a vigilância epidemiológica é quem monitora os vírus em circulação, e é exercida em três instâncias: municipal, por meio dos serviços de vigilância municipais, estadual, com os centros de vigilância epidemiológica (CVE), que coordenam os serviços nos municípios, e nacional, sob a tutela da Secretaria de Vigilância em Saúde, do Ministério da Saúde.
Muitas vezes, os serviços que notificam e identificam vírus respiratórios são os mesmos para outros patógenos, como zika e dengue. A notificação de síndromes gripais é feita pelo e-SUS Notifica, e de Srag (síndrome respiratória aguda grave) pelo Sivep-Gripe, ambos do Ministério da Saúde.
Os centros sentinelas fazem a notificação de síndromes gripais, enquanto o registro de Srag é compulsório desde 2009 (com a epidemia de H1N1). Os hospitais sentinelas são centros de vigilância de doenças infecciosas que realizam a coleta de uma porcentagem definida de amostras para análise do tipo de vírus. O objetivo é fornecer dados sobre frequência dos patógenos em circulação, podendo assim identificar surtos e alterações na sazonalidade.
Com uma forte atuação na pandemia, Júnior espera que esses serviços existentes não sejam descontinuados passado o período de emergência sanitária da Covid. “Esses serviços de vigilância já existiam, mas foram reforçados com a pandemia, quando os hospitais e a própria população passaram a ter um interesse maior em identificar, saber qual o vírus, e isso trouxe uma notificação mais apurada”, diz.
De acordo com a Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo, todos os hospitais da rede privada ou pública possuem um profissional responsável por fazer notificações de síndromes gripais ou Srag. A capital conta ainda com sete unidades sentinelas que fazem a coleta de cinco amostras por dia, sendo a principal delas para vírus em crianças o Hospital Municipal Infantil Menino de Jesus.
Ainda de acordo com a pasta, as portarias ministeriais asseguram o financiamento de laboratórios para o sequenciamento de vírus, sendo em São Paulo as unidades Instituto Adolfo Lutz e Butantan reconhecidas.
A Secretaria de Estado de Saúde, procurada ainda na gestão de Rodrigo Garcia (PSDB), confirmou a identificação em épocas do ano fora das estações típicas a circulação de outros vírus, como influenza A H3N2 no final de dezembro 2021 e início de janeiro de 2022, e reiterou que o coronavírus continua circulando, junto com outros vírus respiratórios que afetam crianças, adultos e idosos.
Segundo a pasta, houve um reforço das estruturas de vigilância durante a pandemia, com novas técnicas para análises laboratoriais e genômicas, e que divulga regularmente boletins epidemiológicos.
Já o Ministério da Saúde, procurada no fim da gestão de Jair Bolsonaro (PL), disse que segue com a vigilância ativa, mesmo com o fim da Espin (Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional). A pasta informou que os serviços de vigilância foram fortalecidos com a pandemia, saltando de 114 unidades sentinelas em 2019, para 342 em 2022 (aumento de 200%), e que o monitoramento do Sars-CoV-2 foi integrado ao de outros vírus respiratórios de importância em saúde pública.
Por fim, o ministério disse que a pandemia também acelerou a ampliação da Rede Nacional de Sequenciamento Genético (RNSG) devido à necessidade de vigilância genômica das linhagens circulantes de Sars-CoV-2 no Brasil. “Desde então, o Ministério da Saúde passou a divulgar semanalmente boletins epidemiológicos da Covid-19, que trazem informações sobre Srag causadas por outros vírus”, completou.