No momento em que o Brasil atinge a marca de 150 mil vítimas da Covid-19, famílias que foram devastadas pela pandemia enfrentam o luto e tentam retomar a vida em meio a um horizonte nebuloso.
Raquel era conhecida pelo entusiasmo e mantinha uma loja de produtos para cabeleireiros em Jaboatão dos Guararapes, região metropolitana do Recife. Odilon viveu cresceu entre os campos de São José dos Ausentes, na Serra Gaúcha, e trabalhou como garçom até ter a própria lancheria em Gramado.
Odilon perdeu o pai, perdeu a mãe três dias depois e, no mesmo dia, tornou-se mais uma vítima da Covid-19. Com a mesma doença, Raquel fechou os olhos para sempre sem poder despedir-se dos pais. Estava intubada em uma unidade de terapia intensiva quando pai e mãe morreram.
No momento em que o Brasil atinge a marca de 150 mil vítimas da Covid-19, famílias que foram devastadas pela pandemia enfrentam o luto e tentam retomar a vida em meio a um horizonte nebuloso.
São famílias que perderam, três, quatro, até cinco pessoas por complicações ligadas ao novo coronavírus e que nem ao menos puderam despedir-se decentemente dos seus.
Na periferia de Jaboatão dos Guararapes, a família Oliveira foi devastada em quatro dias, com a morte de pai, mãe e filha. Raquel era conhecida pelo entusiasmo e disposição para o trabalho. Não parava nem um minuto sequer.
Começou com um pequeno salão de beleza na parte de baixo de casa, no bairro de Curado IV, em Jaboatão. Depois, montou uma loja de produtos para cabeleireiros. Vez por outra, ainda cortava os cabelos dos clientes mais próximos.
Ainda conseguiu resistir por uma semana. Morreu sem saber que os pais tinham tido o mesmo destino poucos dias antes.
“É uma situação trágica, uma luta com o invisível. Devastou uma parte da minha família. Estamos destroçados”, afirma o professor Klebson Oliveira, primo de Raquel.
Cristóvão Pessoa, 67, pai de Raquel, se sentiu mal quatro dias depois que a filha foi internada. Tinha os mesmos sintomas. Chegou ao hospital e morreu no mesmo dia em decorrência da doença.
Ana Lúcia Barros, 64, mulher de Cristóvão, não soube da morte do marido. Com bastante falta de ar, ela foi internada na mesma data e morreu um dia depois.
O casal era de Bom Jardim, no agreste de Pernambuco, mas sempre estava na casa da filha, no Recife, para cuidar do neto de 11 anos. A criança e o pai, socorrista em um hospital privado, também foram infectados, mas apresentaram sintomas leves e se recuperaram.
“O pai e o filho estão, na medida do possível, seguindo a vida. Mas é uma dor muito grande. A criança, evidentemente, precisou de um acompanhamento psicológico”, diz Klebson.
A milhares de quilômetros de Jaboatão, na Serra Gaúcha, a família Padilha tinha como centro o sítio em São José dos Ausentes, cidade de 3,5 mil habitantes onde moravam Solon Gonçalves Padilha, 88, e sua mulher, Leonor Alano Padilha, 84.
A família era grande: tinham 11 filhos, mais de 40 netos, além de bisnetos. O sítio onde criavam gado era o ponto de encontro da família. A cada fim de semana, um dos filhos se revezava para ajudar os pais na lida do campo.
Em julho, surgiram os primeiros infectados pelo novo coronavírus na família, que teve um total de 12 pessoas contaminadas. As mortes vieram em sequência. Solon não resistiu às complicações da Covid-19 e morreu em 16 de julho.
Três dias depois, a família perdeu Leonor e o filho Odilon Padilha. Outros dois filhos do casal morreram nas semanas seguintes.
Com 58 anos, Odilon Padilha deixou São José dos Ausentes aos 22 anos e mudou-se para Gramado, onde construiu a vida no ramo gastronômico. Começou como garçom e progrediu até ter sua própria lancheria.
“Ele era um homem muito simples, uma pessoa muito dedicada ao trabalho”, afirma o filho de Odilon, Rodrigo Padilha. Ele conta que o pai continuou trabalhando na pandemia, mas tomava cuidados, como o uso de máscara e higienização das mãos. “Não sei como ele se infectou.”
No início de julho, começou a sentir sintomas de gripe. Achou que seria um resfriado típico do inverno e, por isso, demorou a buscar atendimento. Internado, ficou 12 dias na UTI, mas não resistiu à doença. Morreu no mesmo dia que a mãe, um baque para toda a família.
Além do luto, ainda teve que lidar com comentários maldosos de que a família teria se reunido em uma festa no sítio durante a pandemia. A última reunião familiar, diz Rodrigo, havia acontecido no ano passado, quando comemoraram os 65 anos de casamento dos avós.
Depois do pai e dos avós, Rodrigo ainda perdeu dois tios, irmãos de seu pai. Um deles, Francisco Padilha, atuava no mesmo ramo: era dono de um restaurante na cidade vizinha de Canela.
Casos semelhantes aconteceram em outros estados. Na cidade de Cândido Sales, sudoeste da Bahia, mãe e duas filhas morreram em agosto em um intervalo de oito dias, contaminadas pelo novo coronavírus.
A mãe tinha 79 anos e morreu após ter sido internada em um hospital na cidade vizinha Vitória da Conquista. As duas filhas morreram na própria cidade. Seus nomes foram preservados a pedido de familiares.
A cidade de Natal (RN) registrou uma situação parecida: mãe e duas irmãs morreram de Covid-19 em um período de dez dias. As irmãs Maria José da Silva, 55, e Maria Gorete da Silva, 49, morreram com uma diferença de horas após terem sido internadas em um hospital na capital potiguar.
A psicóloga Luciana Mazorra, do instituto especializado em luto Quatro Estações, alerta que as perdas múltiplas podem resultar em um luto mais complicado para as famílias.
“É uma sobrecarga muito grande para este enlutado, que muitas vezes perde justamente as pessoas que estariam ao lado para dar suporte nesse momento difícil”, explica.
Quando as mortes acontecem em meio a uma pandemia como a da Covid-19, uma série de fatores torna a situação ainda mais difícil: o fator surpresa de uma morte prematura, a distância durante a internação e as limitações nos rituais de despedida, como velório, enterro ou cremação.
Para completar, o enlutado ainda enfrenta obstáculos para retomar a vida, já que a pandemia impede a proximidade física das redes de apoio.
Essas dificuldades foram enfrentadas pela família Oliveira, em Jaboatão dos Guararapes. As restrições para a realização do enterro, contudo, não impediram uma homenagem a Cristóvão, que assim como Levino Ferreira, tocava saxofone.
Músicos do Grêmio Lítero Musical Bonjardinense, onde ele tocou na juventude, fizeram uma apresentação junto à casa da família.