Como o Brasil entrou, sozinho, na pior crise da história
Desde os anos 1930 não havia recuo do PIB em dois anos seguidos. As consequências vão nos acompanhar por muito tempo
GRAZIELE OLIVEIRA E MARCOS CORONATO
Queima de café em Santos nos anos 30. Com a queda no preço da commoditie o governo brasileiro tomou uma medida drástica para salvar a economia. Na crise atual, a solução não é tão fácil. PUBLICIDAD;
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Era junho e uma gigantesca fogueira ardia na cidade de Santos, no litoral paulista. Mas não era festa junina. Corria o ano de 1931 e o governo mandara queimar café, a fim de destruir estoques e tentar forçar o aumento do preço do grão no mercado internacional. A cotação havia caído a um terço da registrada dois anos antes. Era um dos efeitos, no Brasil, da Grande Depressão, que nasceu nos Estados Unidos e destroçou a economia global. Estima-se que tenhamos torrado em fogueiras como a de Santos mais de 71 milhões de sacas de café, ou mais de 4 bilhões de quilos, o suficiente para garantir o consumo mundial de café por três anos. No pior triênio daquela crise, que virou referência de desastre no Brasil e no mundo, a economia nacional encolheu a um ritmo médio de 1,4% ao ano. Na crise atual, será pior. No triênio de 2014 a 2016, a economia deverá encolher a um ritmo médio de 2,4% ao ano.
Desta vez, ao menos, não temos a ilusão de haver uma solução tão fácil quanto queimar café. A economia está muito mais complexa – e os problemas também. O cenário atual não dá espaço para nenhum otimismo. A produção do país, medida pelo PIB, diminuiu em 2015 e deverá recuar novamente neste ano. “É a maior crise do período pós-industrialização. Teremos dois anos seguidos de queda do PIB e existe, sim, a possibilidade de mais um ano de queda”, diz Antonio Corrêa de Lacerda, coordenador do Programa de Estudos Pós-Graduados em Economia Política da PUC-SP. A crise será muito mais duradoura que esse biênio catastrófico. Para que um país com o nível de pobreza e o perfil demográfico do Brasil prospere realmente, a produção precisa crescer num ritmo médio próximo de 2,5% ao ano, no mínimo, durante vários anos consecutivos. Estamos abaixo desse ritmo desde 2014 e não há previsão de quando voltaremos a ele. Certamente não antes de 2018. Os mais pessimistas acreditam que isso só será possível após 2020. “Não podemos nem dizer que se trata de um ciclo de três anos. Ele é muito mais longo do que isso”, diz Otto Nogami, professor de economia da escola de negócios Insper.
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>>Para brasileiro, corrupção é um problema dos outros
Países que entram em crises severas, como a atual, dificilmente saem delas sem sofrer mudanças – todas profundas, muitas certamente ruins, talvez algumas boas (leia o quadro abaixo). Do lado positivo, Lacerda explica que, se a taxa de câmbio se mantiver entre R$ 3,80 e R$ 4, as exportações continuarão estimuladas. O encarecimento da produção na China e a disposição daquele país em desacelerar também facilitarão a produção da indústria no Brasil. O Brasil ainda tem infraestrutura precária – faltam portos e estradas. É uma deficiência, mas a crise pode forçar o surgimento de condições que atraiam investidores. “No G20 (grupo das 20 maiores economias do mundo), somos o país que oferece melhores oportunidades para isso”, diz. No cenário ideal, a crise tornará evidente a necessidade de reformas como a da Previdência, a das leis trabalhistas e a das contas públicas. Um governo minimamente organizado conseguiria encaminhá-las e compartilhar com o Congresso a responsabilidade por seu avanço. Mas a possibilidade de ocorrência de boas mudanças não escondem o dano que será causado pela crise.
>>“A crise corroeu os avanços. Teremos de refazer 15 anos”, diz economista
O desemprego assusta apenas pela velocidade com que avança. O país levou dez anos para reduzi-lo de 10% para 5%, mas precisará de apenas dois anos para que ele avance e retorne ao nível anterior. Os problemas que ele provoca se espraiam pela sociedade. “Desemprego dessa magnitude tem consequências sociais graves e de longo prazo”, diz o economista José Pastore, especialista em economia do trabalho. “As famílias que ficam inadimplentes vão perder reputação, o nome limpo e a capacidade de usar crédito no futuro.” Ele adverte que, num cenário de estagnação e inflação, as famílias conseguem investir menos na formação dos jovens. A sociedade vai perdendo a capacidade de investir em capital humano, que é diferente de construir uma fábrica. Capital humano não se recupera rapidamente, com uma decisão ou um momento de guinada econômica. A preparação de um cidadão educado, crítico, produtivo e apto a aprender continuamente ao longo da vida exige investimento seguido, por vários anos. Não sabemos ainda quão profunda será essa chaga nos anos à frente.
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>>O desajuste nas contas públicas prejudica os mais pobres
O mercado de trabalho travado acarretará outros problemas em prazo mais curto. “Uma economia estagnada apresenta um custo social crescente, com o aumento do desalento”, diz Heron do Carmo, professor da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (FEA-USP). Desalento é aquela situação em que o cidadão desiste de procurar emprego. O perigo é que ele desista de se atualizar e de aprender – ou seja, torne-se menos produtivo e reduza ainda mais suas chances de voltar a encontrar emprego no futuro, mesmo que o país volte a crescer. Carmo lembra que os danos sociais não param por aí. A família média brasileira sofre muito mais, numa fase de desemprego, do que a família média de um país com renda mais elevada.
As explicações para termos chegado a esse ponto envolvem, obrigatoriamente, a crise política. Encaminhar reformas econômicas sempre foi difícil. Com Executivo e Legislativo paralisados, pela falta de horizonte quanto ao mandato da presidente da República, encaminhá-las tornou-se impossível. A crise política anda de braços dados com as investigações da Operação Lava Jato – que disseminou pânico numa população de políticos e empresários que se consideravam invulneráveis, a despeito de seus desmandos com a coisa pública. A investigação, porém, afeta o ritmo de trabalho de grandes empresas de construção e infraestrutura. É parte do preço a pagar pela mudança na cultura da impunidade.
A maior parte do problema nasceu de uma política econômica desastrosa e arrogante (porque mantida mesmo após sinais claros de que estava equivocada). O governo apostou em baixar juros à força, incentivar o consumo e beneficiar setores e companhias seletivamente, em vez de promover reformas que facilitassem os negócios no país. O barateamento forçado dos combustíveis e da energia elétrica apresenta seu custo agora, na forma de inflação elevada. Permitiu-se que as contas públicas saíssem de controle. “Ficou clara a situação de desequilíbrio, com a estagnação do PIB ao mesmo tempo que a inflação aumenta”, diz Carmo, da FEA-USP. Contra inflação alta, a solução tradicional é aumentar os juros. Mas a maioria dos especialistas concorda que não há mais sentido em aumentá-los agora – isso inflaria ainda mais rapidamente a dívida pública, com pouco efeito na disparada de preços. Agora, resta esperar que termine o ajuste nos custos da produção no país, e que a falta de poder de consumo das empresas e famílias puxe a inflação para baixo.
E o cenário global? O resto das economias relevantes não vai mal. Nogami, do Insper, acredita que o fator externo responde por apenas 20% da recessão atual do Brasil. Ou seja: a retração econômica atual, a maior por que o Brasil já passou, parte de uma das maiores crises da história do país, foi gerada por aqui mesmo. Que deixe junto com suas sequelas, ao menos, lições duradouras.
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