Imagine não ter, dia após dia, ano após ano, um espaço próprio e não poder escolher com quem estar, o que comer e aonde ir. Além disso, que ameaças e suspeitas estejam por toda parte, e que amor ou mesmo um toque humano gentil sejam difíceis de encontrar. Imagine ainda estar separado da família e dos amigos.
Para lidar com esse tipo de ambiente social, presidiários precisam se adaptar. Especialmente aqueles condenados a longas penas.
Em um relatório feito para o governo do Estados Unidos sobre o impacto psicológico da prisão, o psicólogo social Craig Haney foi direto: “Poucas pessoas saem inalteradas ou ilesas de uma experiência prisional”.
Levando em consideração entrevistas com centenas de presidiários, pesquisadores do Instituto de Criminologia da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, foram ainda mais longe, afirmando que a prisão de longo prazo “muda a essência das pessoas”.
Ou, como resumem as palavras de um preso entrevistado para uma pesquisa publicada nos anos 1980, depois de alguns anos na prisão, “você não é o mesmo”.
Mas estudos recentes têm mostrado que, na verdade, apesar da relativa estabilidade, nossos hábitos de pensamento, comportamento e emoção mudam, sim, de forma significativa – especialmente em resposta a diferentes papéis adotados ao longo da vida.
É quase inevitável, portanto, que o tempo passado na prisão – em um ambiente altamente estruturado, mas ameaçador – provoque mudanças na personalidade.
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Especialmente para as pessoas preocupadas em como reabilitar o prisioneiro, o problema é que essas mudanças de personalidade, embora ajudem o indivíduo a sobreviver à prisão, são contraproducentes para sua vida após a soltura.
Características comuns do ambiente prisional que podem mudar a personalidade de alguém incluem a perda crônica do livre arbítrio e de privacidade, o estigma diário, o medo constante, a necessidade de vestir constantemente uma máscara de invulnerabilidade e a apatia emocional (para evitar a exploração por outros), além da necessidade, dia após dia, de seguir rigorosas regras ou rotinas impostas.
‘Prisionização’
Há pouca pesquisa sobre como as características crônicas do ambiente podem mudar a personalidade do presidiário nos termos do Modelo dos Cinco Grandes Fatores (ou Big Five).
Trata-se de um modelo usado amplamente na psicologia para avaliar a personalidade da população em geral (não carcerária) com base nos traços de: neuroticismo (que mede a instabilidade emocional), extroversão, agradabilidade (ou simpatia), abertura a experiências e a conscienciosidade (relacionado à disciplina).
No entanto, há um reconhecimento disseminado entre psicólogos e criminalistas de que presidiários se adaptam ao ambiente, o que eles chamam de “prisionização”. Isso contribui para uma espécie de “síndrome pós-encarceramento” quando eles são libertados.
Como exemplo, há os resultados de entrevistas em profundidade conduzidas com 25 ex-condenados à prisão perpétua (incluindo duas mulheres) em Boston, nos EUA, que passaram em média 19 anos na prisão.
Ao analisar suas narrativas, a psicóloga Marieke Liema e o criminologista Maarten Kunst descobriram que o grupo desenvolveu “traços de personalidade institucionalizados”, como “desconfiar dos outros, dificuldade de se relacionar e de tomar decisões”.
Um ex-presidiário de 42 anos disse: “Eu ainda meio que ajo como se estivesse na prisão. E, assim, você não é como um interruptor ou uma torneira. Não dá para simplesmente se desligar. Quando você faz algo por um período longo… isso se torna parte de você”.
A mudança na personalidade predominante foi a inabilidade de confiar nos outros – uma espécie de constante paranoia. “Você não consegue confiar em ninguém na prisão”, disse outro entrevistado, um homem de 52 anos. “Tenho problemas de confiança, simplesmente não confio em ninguém.”
Entrevistas com centenas de presidiários britânicos realizadas por Susie Hulley e seus colegas do Instituto de Criminologia mostraram um quadro parecido. “Muitos (…) nos disseram que passaram por grandes – e às vezes completas – transformações pessoais”, escreveram os estudiosos em 2015.
Os presidiários descreveram um processo de “anestesia emocional”. “Isso te endurece. Isso te deixa um pouco mais distante”, disse um, explicando como as pessoas na penitenciária deliberadamente escondem e abafam suas emoções. “É o que você se torna, e se você já é duro no início, então você fica ainda mais duro, você fica ainda mais frio, ainda mais desinteressado”.
Outro afirmou: “É… eu meio que não tenho mais sentimento pelas pessoas”.
Em relação ao Modelo dos Cinco Grandes Fatores da personalidade, pode-se caracterizar isso como uma forma de “neuroticismo” extremamente baixo (ou alta apatia emocional), combinado com baixas extroversão e agradabilidade. Em outras palavras, não é uma mudança de personalidade ideal para o retorno ao mundo exterior.
Essa é, sem dúvida, uma preocupação de Hulley e seus colegas. “Um presidiário de longo prazo se torna ‘adaptado’ aos imperativos de um período longo de confinamento; ele ou ela se torna mais apático emocionalmente, mais isolado e socialmente retraído, e talvez menos ajustado à vida após a soltura”, alertaram.
Esses estudos com entrevistados envolveram presidiários encarcerados há muito tempo. Mas um artigo exploratório realizado em fevereiro de 2018 aplicou testes neuropsicológicos para mostrar que passar mesmo um período curto na prisão provoca um impacto na personalidade.
Os pesquisadores liderados por Jesse Meijers, da Universidade Vrije, de Amsterdã, na Holanda, fizeram dois testes – com diferença de três meses entre eles – com 37 prisioneiros. No segundo teste, houve aumento da impulsividade e redução do controle da atenção. Essas mudanças cognitivas podem indicar que sua conscienciosidade foi prejudicada.
O tempo de cadeia pode resultar num aumento da impulsividade e redução do controle da atenção
Os pesquisadores acreditam que as mudanças se devem provavelmente ao pobre ambiente prisional, com falta de desafios cognitivos e perda da autonomia. “Essa é uma descoberta significativa e socialmente relevante”, concluíram, “já que presos libertos podem ter uma capacidade menor de viver dentro da lei do que antes do período na prisão”.
No entanto, outras descobertas oferecem um pouco de esperança. Em outro estudo recente – um dos primeiros a aplicar o Modelo dos Cinco Grandes Fatores às mudanças de personalidade dos prisioneiros -, pesquisadores compararam os perfis de personalidade de prisioneiros de segurança máxima na Suíça com vários grupos-controle, como estudantes universitários e guardas prisionais.
E descobriram que, enquanto os prisioneiros tinham pontuação menor em extroversão, abertura para experiências e agradabilidade, como esperado, eles pontuaram mais em conscienciosidade, principalmente nos “subtraços” de ordenamento (busca pela ordem) e autodisciplina.
Os pesquisadores, liderados por Johanna Masche-No, da Universidade Kristianstad, da Suíça, acreditam que os achados podem refletir um ajuste positivo da personalidade à situação da prisão: “O ambiente na prisão é muito rígido com respeito a regulações e normas, e o espaço privado é limitado”, concluíram. “Tal ambiente cria demandas de ordenamento aos presos para evitar tanto punições formais como atos negativos de seus copresidiários”.
Em outras palavras, a conscienciosidade pode ajudá-lo a evitar problemas.
Embora os resultados da pesquisa suíça pareçam contradizer a holandesa, é válido notar que enquanto os prisioneiros holandeses ficaram mais impulsivos e menos atentos, eles também melhoraram seu planejamento espacial, o que poderia ser visto como relacionado ao ordenamento (Meijers e seus colegas não se aprofundaram nesse ponto porque pensaram que eles pudessem ter pontuado melhor na segunda vez por uma questão de prática).
Outra possibilidade é que a alta conscienciosidade vista nos prisioneiros suíços se deva ao sistema prisional do país, onde há mais ênfase no tratamento e na reabilitação do que em outros países.
Também esperançosas, e de alguma forma em linha com a descoberta dos suíços, são duas pesquisas recentes envolvendo prisioneiros interagindo em jogos financeiros usados para estudar cooperação, tomada de risco e punição (um dos jogos é por acaso O Dilema do Prisioneiro). Elas mostraram que os prisioneiros se engajaram com níveis normais ou mesmo elevados de cooperação.
As descobertas têm implicações em debates sobre a reintegração de criminosos na sociedade, diz Sigbjørn Birkeland, da Escola de Economia Norueguesa NHH, que conduziu um desses estudos com colegas.
“Uma percepção comum (…) é que criminosos são homens maus sem motivação pró-social (o desejo de beneficiar outras pessoas ou grupos), e essa percepção pode ser usada para justificar sentenças mais rígidas aos criminosos”, escreveram. Mas os estudos mostram que os criminosos podem ser “pró-socialmente motivados como a população em geral”.
À medida que cresce a conscientização de que a personalidade é maleável, espera-se que isso aumente os esforços para avaliar como o ambiente prisional pode moldar o caráter do condenado, o que certamente poderia afetar seu retorno à sociedade.
Atualmente, há poucas pesquisas com esse objetivo específico. As últimas evidências sugerem que a vida na prisão provoca mudanças de personalidade que podem prejudicar sua reabilitação e reintegração. Em certa medida isto é inevitável, devido à perda de privacidade e liberdade.
Mas dito isso, as descobertas com relação à conscienciosidade e cooperação do prisioneiro mostram que nem todas as esperanças estão perdidas, e elas destacam alvos potenciais para programas de reabilitação.
Essas não são questões meramente abstratas para os estudiosos: elas têm profundas implicações em como nós, como sociedade, pretendemos lidar com as pessoas que desobedecem as leis.
As evidências atuais sugerem que quanto mais longa e severa for a sentença prisional – em relação à liberdade, escolha e oportunidade de ter relacionamentos seguros e significativos – mais provável será que a personalidade dos prisioneiros mudará de forma a tornar a reintegração difícil e a aumentar o risco de reincidência ao crime.
Em última análise, a sociedade deve ser confrontada com uma escolha. Podemos punir os ofensores mais severamente e arriscar mudá-los para pior, ou podemos desenvolver regras de sentença e prisões de forma a ajudar os ofensores a se reabilitar e a mudar para melhor.
Fonte: BBC Brasil
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