Dados mostram que Rancho Queimado não foi especialmente bem-sucedida em conter o vírus
Com o apoio da prefeitura, de vereadores e de líderes comunitários, o médico local passou a prescrever “kit covid” a todos os pacientes com diagnóstico ou com suspeitas da doença na cidade. Dos cerca de 2,8 mil moradores de Rancho, quase a metade, 1.115 pessoas, tomou o vermífugo ivermectina. Outras 438 pessoas foram medicadas com um coquetel de hidroxicloroquina, azitromicina e outras drogas. A prefeitura gastou cerca de R$ 47 mil com os medicamentos até agora.
Mas os dados mostram que Rancho Queimado não foi especialmente bem-sucedida em conter o vírus. E epidemiologistas descartam qualquer efeito dos remédios sobre os números da doença no local. Vários estudos clínicos no Brasil e no exterior já mostraram a ineficácia do tratamento com hidroxicloroquina no enfrentamento ao vírus.
Segundo dados da Secretaria de Estado de Saúde de Santa Catarina organizados pela iniciativa Brasil.io, Rancho Queimado tem números similares aos de cidades fronteiriças. Em Rancho Queimado, foram dois óbitos até o momento. Leoberto Leal conta também duas mortes, em uma população de 3 mil pessoas. Já Angelina teve apenas um óbito confirmado entre os 4,7 mil habitantes. Nenhuma das duas cidades vizinhas adotou de forma oficial o “tratamento precoce”, segundo informaram as prefeituras.
Ao Estadão, Heinze disse que conheceu o caso por meio de um grupo de médicos defensores do “tratamento precoce”. Intitulada de “Médicos pela Vida”, a iniciativa soma mais de 14 mil profissionais, segundo o senador. “(Eles) têm casos para apresentar do Oiapoque ao Chuí, e aí a gente foi conhecendo, tipo Porto Feliz (SP), Porto Seguro (BA) e Rancho Queimado”, disse o senador.
“Rancho Queimado foi o primeiro que eu mencionei. Falei com a prefeita (Cleci Veronezi, do MDB), falei com o médico, (Armando Taranto), e ele explicou como eles fizeram, quando começou o processo lá. É uma cidadezinha pequena com apenas um médico, e ele me explicou como trabalhou”, conta o senador.
Armando Taranto é um médico de 69 anos. Passou os últimos 45 deles trabalhando em Rancho Queimado. Com a concordância da prefeita, dos vereadores e do Conselho Municipal de Saúde, Taranto abriu um posto separado para atender os pacientes com suspeita de covid-19 e passou a aplicar o protocolo do “tratamento precoce”. Para os pacientes sem sintomas e com teste negativo para o vírus, a prescrição era de ivermectina (6 mg), como forma de prevenção. Se o teste fosse positivo ou se o paciente apresentasse sintomas, a prescrição era de ivermectina (6 mg), hidroxicloroquina (400 mg), azitromicina (500 mg) e aspirina (100 mg), mais corticóide (prednisona ou dexametasona) e complexo de vitaminas.
Questionado sobre o fato de municípios vizinhos terem tido resultados similares sem empregar o mesmo protocolo, Taranto desconversa. “Medicina não é uma ciência exata, né? Você tem cidades onde a tuberculose ataca uma parcela grande da população, e outra cidade do lado onde não ataca. Angelina tem dois médicos, um frontalmente contrário ao tratamento, mas tem outro que faz (o tratamento). Já Leoberto Leal é longe daqui”, diz.
Crítico
Adversário de Heinze e Jorginho Mello nos embates da CPI, o senador Otto Alencar (PSD-BA) diz que a argumentação a favor do “tratamento precoce” é uma “leviandade”. “Eles todos sabem que 95% das pessoas que contraem a doença ficam assintomáticos ou têm sintomas leves ou moderados. Então, o que eles fazem? Pegam os assintomáticos, leves e moderados, e tocam a hidroxicloroquina. As pessoas ficam boas. E ficariam boas de qualquer jeito. Se tomassem água era melhor, porque a hidroxicloroquina pode matar quem tem arritmia, e a água não mata”, diz Alencar, que é médico.
Em julho do ano passado, a Organização Mundial de Saúde (OMS) abandonou definitivamente os testes com a cloroquina, depois que a droga antimalárica se mostrou ineficaz contra a covid-19. Outras drogas, como a ivermectina, não se mostraram eficazes para combater ou prevenir a covid-19. O uso do medicamento para a doença viral é até desaconselhado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária e pela farmacêutica alemã Merck, que criou o vermífugo nos anos 1970 e o comercializa no exterior.
‘Piada do ponto de vista científico’
Segundo o epidemiologista e ex-reitor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) Pedro Hallal, usar Rancho Queimado como “estudo de caso” para defender o uso de drogas como a cloroquina e a ivermectina “é uma piada do ponto de vista científico”. “Algo que só é feito por quem não entende nada de ciência”, diz ele. A população da cidade e o número de óbitos são pequenos demais para qualquer conclusão válida, segundo o especialista da universidade gaúcha.
Mesmo se fossem representativos, os números de Rancho Queimado não seriam bons quando comparados com o restante do mundo, conforme observa Pedro Hallal. “As duas mortes confirmadas levam a uma taxa de 666 mortes para 1 milhão de habitantes, enquanto a média mundial está hoje em 488 mortes por 1 milhão. Então, o resultado de Rancho Queimado é até pior que a média mundial”, pontua o estudioso.
Hallal também diz que o “tratamento precoce” não teve nenhuma influência sobre o andamento da pandemia de covid-19 na cidade. “Todos os órgãos de saúde já testaram esses medicamentos e eles não funcionam para covid-19. Ou seja, não tem nada a ver com isso o resultado de Rancho Queimado nem o das cidades vizinhas”, diz. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.