Planta da maconha se dissemina como aguapé na floresta, protegida pela imensidão das árvores e exposta à tríplice fronteira do Brasil, Peru e Colômbia
Nélson Gonçalves, Especial de Coari (AM)
O verde da planta da cannabis é um camaleão quase perfeito no meio da floresta amazônica. Quase, porque, depois de comercializada entre jovens, a droga que serve ao tráfico internacional na fronteira a Noroeste, entre Brasil, Peru e Colômbia, traz violência e marginaliza. Em cidades como Coari (AM), a disputa é evidente nas ruas.
Regra geral, a cannabis é a mesma que amedronta e destrói famílias no Sudeste, em Bauru ou outro canto qualquer do Brasil paulista. A agravante é que, na imensidão do Amazonas, a droga encontra a proteção do “mar” de centenas de quilômetros de árvores e as igualmente extensas rotas fluviais que recortam o cenário de 66 municípios encravados ao longo de milhares de hectares da gigantesca floresta tropical.
E o gigantismo da mata é o texto pronto do alarde, sem exagero, para a “sutil” penetração da planta, e depois da droga, no Brasil Amazônico. O ingrediente adicional dessa paisagem é que as plantações, praticamente ignoradas pelas autoridades, são realidade em comunidades ribeirinhas. E pior, a plantação de maconha é tri-nacional. A rota internacional, a partir de Coari, ou Tefe, por exemplo, tem uma logística e geografia perfeita para o rico mundo do tráfico. “Além do isolamento, estamos há pouco de cinco horas de Miami (EUA)”, conta, com ironia, um jovem ribeirinho, ainda aprendiz de traficante.
Água e floresta estão por toda parte. E, por isso, o consumo e comércio “livre” percorre o rio Solimões e seus afluentes ainda permitem a comunicação entre o oceano Pacífico e o Atlântico, sem contar a tríplice fronteira, com Colômbia e Peru cooptando igualmente ribeirinhos ou tornando a região o paraíso natural da maconha no extremo Noroeste brasileiro.
O governo do Amazonas tenta, há um tempo, convencer Brasília de que o combate tem de ser realizado pelo Exército. As polícias locais não têm estrutura e nem “ambiente psicológico” para enfrentar o problema transnacional. “No início do mês (setembro), a disputa pelo tráfico gerou mais uma morte em um tiroteio no meio do Solimões. O problema é que dois traficantes conseguiram se safar (na troca de tiros com a polícia). E ela abafa esses casos, porque os caras têm metralhadora e vêm atrás. A população sabe, mas ninguém abre a boca, porque tem medo”, conta um motoxista nas ruas de Coari.
Um repórter da região, que fez a cobertura da ocorrência para Manaus, complementa que ouviu da polícia que “não foi nada, caso corriqueiro”. “A polícia matou um traficante, mas o corpo ficou no rio e isso ajuda a abafar. Acompanhe os casos de mortes nas ruas da cidade. Todo mês tem morte por disputa pelo tráfico e toda semana tem troca de tiros nas ruas entre facções rivais”, conta o jornalista.
Se nas fronteiras secas do Sul e Sudeste do País a fiscalização é frágil, na imensidão da Amazônia ela é inexistente. Até pela dimensão. “O tráfico é protegido pelo gigantismo da floresta e a logística nas fronteiras com o Peru e Colômbia. A droga está nas cidades do Norte e é o mais preocupante desafio do País que precisa ser enfrentado. O Sudeste precisa rever o discurso da proteção da floresta e olhar para a invasão do Brasil através das plantações de maconha”, adverte importante integrante de governo municipal no Amazonas que, por razões óbvias, fala sob sigilo.
Em Coari (AM), município de 86 mil habitantes, ou Tefe (com seus quase 70 mil habitantes), a droga “navega” pelas águas e “nasce” no meio de árvores centenárias. Que operação policial tem capacidade e amplitude para “atacar” o camaleão psicotrópico que brota no miolo da floresta e ‘encanta’ os jovens ribeirinhos?
Governos assistem ao tráfico
O fato é que a plantação de cannabis “entra” com a mesma velocidade que o governo federal assiste ao tráfico internacional tomando conta de cidades em Roraima, Rondônia e Amazonas. Basta desembarcar nas cidades para presenciar a força do tráfico entre as comunidades. Grupos rivais disputam territórios estratégicos, como em Coari (AM). Violência, prostituição e pobreza colaboram com o cenário de dependência.
Nas comunidades rurais, ribeirinhos são cooptados para servir ao tráfico. Muitos aceitam a tarefa até de plantar a droga em pequenas propriedades. Alguns alegam não saber, no início, do que estaria nascendo na terra arenosa. A suposta ingenuidade empresta sua face ao dinheiro fácil.
Mas, com o tempo, o dinheiro fácil dos traficantes – contraditoriamente – também muda a vida dos brasileiros que vivem abandonados em comunidades. Sem acesso à saúde, saneamento, eles se veem reféns do aparato financeiro e logístico da cannabis. Isolados na floresta, dezenas de comunidades acabam incorporando a presença do tráfico como elemento de sobrevivência.
Conforme o repórter local, algumas comunidades indígenas também estão entrando nesse “barato” do dinheiro fácil em troca das plantações. O governo não chega à maioria das aldeias. Em Coari, por exemplo, o Incra reconhece apenas oito comunidades.
De novo, o isolamento serve à proteção e, também, ao distanciamento da “civilização”. “Temos oito comunidades indígenas cadastradas junto ao governo. Mas outras 20 aldeias ainda não foram reconhecidas pelo Incra. A Prefeitura de Coari é quem dá assistência a essas comunidades, além dos inúmeros bolsões de ribeirinhos ao longo dos canais de rios”, conta o secretário de Saúde de Coari, Jani Kenta Iwata.
Para o secretário, o combate ao tráfico em toda a Amazônia exige a atuação do Exército, pela dimensão territorial e o aparato da irregularidade. “O governo estadual e os municípios estão com esta demanda em Brasília há algum tempo. Não há condições de combater ao tráfico em toda a Amazônia sem um programa especializado e com a participação ativa do Exército brasileiro”, opina.
O secretário explica a situação geográfica da presença do tráfico. “Estamos situados no médio Solimões, a 346 km de Manaus. E no Alto Solimões temos, perto daqui (Coari), a tríplice fronteira, com Peru e Colômbia. Os governos têm enorme dificuldade em agir pela imensidão de água e floresta ao redor”, argumenta.
E, como no Sudeste, a disputa gera violência, mortes. “Uma das maiores fronteiras abertas do mundo é entre Tabatinga, do lado do Amazonas no Brasil, Letícia do lado da Colômbia, e Santa Rosa e Islândia, cidades do Peru. O impacto é bastante grande do ponto de vista da violência que a droga gera e a disputa entre as facções aqui também tem ceifado muitas vidas”, complementa Kenta.
Nas cidades, os efeitos são observados claramente. Basta olhar para a relação entre prostituição, crimes contra a vida e violência entre gangues. Outro olhar é para a rua. A frota de motos explica como funciona parte do jogo do silêncio. Coari, com 86 mil habitantes, tem mais de 20 mil motos. É muito comum a circulação sem placa, na contramão, com mais de uma pessoa na garupa e sem capacete.
‘Voadeira’ a jato
De Manaus para o Interior do Amazonas a voadeira é o meio de transporte mais comum. O rio interliga as 66 cidades do Estado. Alguns municípios, como na região de Parintins ou na zona de petróleo e gás em Coari, contam com aeroportos.
O Barco Recreio, onde os passageiros viajam em redes, sai de segunda-feira às 19h de Manaus e chega em Tefé na quarta-feira, às 9h. O “Rei Davi” conta com dois compartimentos para passageiros. Tem maior capacidade de passageiros, mas é lento. “Ele tem banheiro, lanchonete, camarote de duas camas e redes”. O custo é R$ 80,00 na rede. A lancha a jato tem preço por passageiro de R$ 100,00 a R$ 150,00. Depende da concorrência no dia da viagem. A viagem de Manaus a Coari é sete horas, a 60 km/h, segundo a tripulação. “A lancha consome 3.600 litros de diesel para ir e voltar. O motor tem potência para aumentar a velocidade, mas o consumo de diesel aumenta muito. Não compensa”, diz Marcos Roberto da tripulação.
Segundo ele, de Manaus a Tefé são uns 500 km pelo rio. Antes, Coari fica 80 km distante do ponto final. “Pelo rio o percurso fica em 800 km. De Coari a Tefé são uns 80 km”, diz. A lancha a jato faz algumas paradas no percurso, como em Anamã, Codajas. Os passageiros descem em uma voadeira (barco pequeno) no meio do rio. É o táxi fluvial. E a lancha a jato segue o trajeto.
Ela tem capacidade para 60 passageiros, ar condicionado, cozinha, seis televisores em tela plana e, ao fundo, uma área adicional de acomodação com abertura que permite a vista ao rio. Durante o trajeto de sete horas, o filme de Steven Speilberg (Dinossauros) e um da série James Bond fez as vezes do cinema nas águas.
O almoço é servido às 11h (local): carne de panela, arroz, macarrão ao alho e óleo e uma salada de repolho, mais um copo de refrigerante estão no pacote. O barco a jato, diferente das redes do Rei Davi, tem poltronas espaçosas e almofada. O banheiro é espaçoso. O detalhe é que a descarga jorra água o tempo todo, um desperdício cultural para uma população que tem água em abundância mas, nas cidades, enfrenta problemas de abastecimento por dificuldades na instalação de redes hidráulicas na floresta.
Por causa disso, a água marrom escura do Solimões recebe de tudo, inclusive lixo e esgoto. A maior parte das cidades não realiza tratamento de esgoto. A viagem de Bauru até Coari é desgastante. Para ajustar conexões no percurso, a saída de Coari foi de barco a jato, às 10h. A chegada em Manaus foi às 17h. Depois, o voo de Manaus, na madrugada, até Campinas e, por fim, a chegada em Bauru apenas às 9h35 do dia seguinte.
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