Para ela, programadores, cientistas e empresas deveriam deixar de lado a busca incessante pela reprodução de aspectos humanos nas máquinas e fazê-las serem boas em outras coisas. Afinal de contas, nós já estamos por aqui.
Por que não criar algo diferente? Essa é a pergunta que a especialista em robótica Kate Darling, do MIT Media Lab e do Boston Dynamics AI Institute, se faz quando se depara com robôs humanoides.
Para ela, programadores, cientistas e empresas deveriam deixar de lado a busca incessante pela reprodução de aspectos humanos nas máquinas e fazê-las serem boas em outras coisas. Afinal de contas, nós já estamos por aqui.
“Somos fascinados por nós mesmos. Subconscientemente, comparamos robôs a pessoas, e a inteligência artificial, à inteligência humana. É um padrão do qual é preciso esforço para se afastar”, disse.
Autora do livro “The New Breed”, sobre como a relação histórica da humanidade com os animais pode inspirar nosso entendimento da robótica, ela defende que a tecnologia deve ir além da experiência humana e abraçar outros tipos de inteligência.
“Os animais foram usados ao longo da história para trabalho, para guerras, para companhia, e não porque eles são como nós, mas porque suas habilidades são diferentes das nossas, e isso é útil”, disse ela à Folha em entrevista realizada em São Paulo, onde esteve no fim de julho para participar do evento Flash Humanidades.
Darling diz que o tamanho do impacto dessas tecnologias sobre o trabalho humano depende das escolhas da sociedade hoje, o que talvez não seja um bom sinal.
“Estamos tão focados em lucros de curto prazo que vejo muito investimento em tecnologias que são projetadas para substituir pessoas, mas que não vão fazer um bom trabalho substituindo pessoas”, disse.
* Folha – Qual sua história com os robôs? Houve alguma experiência em particular que a colocou nesse caminho?
Kate Darling – Fiquei muito interessada por robótica quando eu estava em uma universidade de tecnologia em Zurique, onde há muitos cursos na área. Eu comprei um robô chamado Pleo, um brinquedo de 2007 que parece um bebê dinossauro, e fiquei muito ligada emocionalmente a ele. E comecei a notar que todos os meus amigos o tratavam como se estivesse vivo, mesmo sabendo que era uma máquina. Foi aí que comecei a ficar interessada em como e por que fazemos isso com robôs.
Folha – E por que acha que se apegou a esse robô?
Kate Darling – As pessoas têm uma tendência a antropomorfizar, a projetar características e comportamentos humanos em não humanos. Os robôs são interessantes porque são objetos que se movem como agentes de si, e isso faz o cérebro projetar intenção nesse movimento.
Assim, muitas pessoas tratam subconscientemente os robôs como se estivessem vivos, mesmo sabendo que não estão. E nos comportamos ao redor deles como se estivessem vivos. É um viés interessante que temos. E isso se torna cada vez mais interessante à medida que os robôs entram em mais espaços onde interagem diretamente com as pessoas.
Folha – Houve na robótica alguma grande transformação recente, como a que ocorreu na IA com as redes neurais e o aprendizado de máquina?
Kate Darling – Eu diria que não. Ainda não vimos esse tipo de avanço. Acho que na robótica provavelmente será um pouco diferente, com pequenos e médios avanços em diferentes áreas que, combinados, levarão a novas capacidades. Mas não sei se será o mesmo tipo de explosão que vimos com a IA generativa.
Folha – Como viu essa explosão desde o lançamento do ChatGPT?
Kate Darling – Fiquei muito surpresa, e acho que não fui a única, todo o mundo ficou. Até as pessoas que estão construindo a tecnologia não esperavam ou antecipavam os resultados que estavam obtendo. Eu tenho tentado descobrir o que isso significa para os robôs. Não é só você pegar a IA generativa, colocá-la em um robô e ele passa a conseguir fazer tudo. É mais complicado porque os robôs precisam interagir em espaços físicos, e ainda não temos os dados certos para treiná-los a fazer isso.
Hoje há muito foco e investimento para tentar descobrir como a IA generativa e esses grandes modelos linguagem podem ser usados para tornar os robôs melhores e mais inteligentes. E também há muito investimento em robôs humanoides, dos quais eu não sou muito fã e não entendo mesmo o motivo de estarmos tentando construí-los.
Folha – Por quê?
Kate Darling – Bem, nós já temos os humanos. Por que não criar algo diferente? Eu sempre acho mais emocionante quando olhamos para aplicações ou habilidades de robôs que vão além do que os seres humanos conseguem fazer. É muito mais interessante olhar, por exemplo, para as formas diferentes com as quais os robôs navegam o mundo ou para os padrões que eles reconhecem e as pessoas não.
Folha – E por que nos apegamos à ideia de que os robôs precisam ser uma cópia nossa?
Kate Darling – É apenas um padrão, recorremos a isso porque é o que conhecemos. Somos fascinados por nós mesmos. Subconscientemente, comparamos robôs a pessoas, e a inteligência artificial, à inteligência humana. É um padrão do qual é preciso esforço para se afastar. E acredito que há muito potencial e valor em pensar de forma um pouco mais criativa e abrangente.
Folha – O que falta para os robôs irem além das aplicações industriais e chegarem às nossas casas e se integrarem ao cotidiano?
Kate Darling – Eles precisam ser muito mais baratos e funcionar melhor, basicamente. É muito difícil construir robôs que funcionem de acordo com as expectativas das pessoas, que são muito altas por causa da ficção científica e da cultura pop. É também muito difícil fazer robôs que sejam robustos e funcionais o suficiente para estar em uma casa, para não quebrar.
O Roomba [aspirador-robô da iRobot] é basicamente o único robô doméstico bem-sucedido. E isso porque ele realiza uma tarefa única e muito simples. Mas as pessoas querem um robô com funções mais gerais, que consegue desde usar a lava-louças até passear com os pets.
Eu diria que estamos a 5 ou 10 anos de eles serem capazes de realizar tarefas domésticas específicas bem. Mas um robô de propósito geral que possa fazer coisas como um humano e se adaptar a diferentes tarefas, isso será difícil.
Folha – Estamos mais perto desse tipo de robô ou de uma AGI, a IA que teoricamente fará tudo melhor que os humanos?
Kate Darling – Já temos IAs que conseguem fazer muitas coisas melhor do que os humanos. Eu não sei se o objetivo deveria ser esse. Seria muito melhor investir nas coisas que a IA consegue fazer bem e seguir nessa direção. Acho que seria um futuro muito mais frutífero ter dois tipos separados de inteligência.
Folha – E a robótica também deve seguir o mesmo caminho?
Kate Darling – Acho que as melhores aplicações para os robôs são aquelas que ajudam as pessoas a fazer um trabalho melhor ou que fazem algo que os humanos não conseguem fazer de jeito nenhum.
Em vez de apenas tentar substituir os trabalhadores na manufatura, acho que será mais lucrativo se pensarmos mais a longo prazo e readequar nossos locais de trabalho para aproveitar as habilidades dos robôs. Seria um futuro melhor em geral porque não causaria um deslocamento em massa da mão de obra humana. Mas muito poucas empresas ou investidores pensam dessa forma porque tudo está configurado para incentivos de curto prazo.
Folha – O seu livro “The New Breed” faz um paralelo entre a nossa relação histórica com os animais e o nosso futuro com os robôs. Qual é essa conexão?
Kate Darling – Sempre achei muito limitante a comparação dos robôs com os humanos porque já lidamos com outros agentes que sentem, pensam, tomam decisões e aprendem. Os animais foram usados ao longo da história para trabalho, para guerras, para companhia, não porque eles são como nós, mas porque suas habilidades são diferentes das nossas, e isso é útil.
Essa analogia ajusta a ilustrar isso porque amplia nossas perspectivas para pensar nos robôs e na IA como parceiros, não como substitutos.
Folha – Mas os animais nem sempre têm a ver com obtenção de lucros e coleta de dados.
Kate Darling – Essa é a grande diferença entre animais e robôs. Claro que não é totalmente verdade porque criamos cães de maneira a torná-los muito atraentes para as pessoas. E há toda uma indústria em torno disso. Mas acho que há maneiras de lidar com isso no design da tecnologia, embora as empresas não tenham incentivo para isso. Penso que vamos precisar de mais legislação de defesa do consumidor para ajudar a estabelecer os incentivos corretos.
Folha – Quais considerações éticas devem ser levadas em conta?
Kate Darling – Há muitas áreas diferentes para pensar nas considerações éticas. Existem os sistemas de armas autônomas usados nos exércitos ou nas polícias, questões com desinformação gerada pela IA generativa, questões no contexto médico.
O que acho que as pessoas estão menos cientes é do tipo de manipulação emocional que pode ocorrer por meio de chatbots avançados e robôs que podem se tornar amigos das pessoas. Acho que precisamos prestar mais atenção nisso.
Folha – De que forma o trabalho será modificado à medida que esses avanços na robótica e na IA ocorrem?
Kate Darling – A forma como o futuro do trabalho evolui não tem apenas a ver com a forma como a tecnologia avança. São as escolhas que fazemos nas nossas economias políticas.
Se você pegar tecnologias automatizadas e as colocar em uma economia sem proteção ao trabalho, com incentivos ao lucro de curto prazo e que basicamente trata as pessoas como commodities substituíveis, você verá a tecnologia sendo usada para tentar substituir funcionários e ganhar dinheiro rapidamente.
Seria diferente se colocássemos a tecnologia em uma economia com forte proteção ao trabalhador que permita um planejamento a longo prazo. Acho que, nesses contextos, você veria usos mais criativos da automação porque há mais valor a ser obtido a longo prazo.
Folha – Quais serão as habilidades mais valiosas nesse mercado de trabalho do futuro?
Kate Darling – Depende das escolhas que fazemos. Deveríamos nos inclinar para o uso do bom senso, do discernimento, da criatividade, da habilidade de entender o contexto de uma situação e de reagir a qualquer coisa inesperada. Os humanos são muito habilidosos nisso, fazemos automaticamente, quase sem pensar. Seria bom manter essas habilidades nas nossas mãos.
Folha – E acha que estamos fazendo as escolhas certas?
Kate Darling – Não. Acho que estamos tão focados em lucros de curto prazo que vejo muito investimento em tecnologias que são projetadas para substituir pessoas, mas que não vão fazer um bom trabalho substituindo pessoas.
Folha – Qual seria a direção certa a seguir?
Kate Darling – Reconhecer que há coisas que os humanos fazem bem e coisas que a IA faz bem, e tentar combinar essas coisas em vez de primeiro tentar automatizar alguém e depois ter que recontratá-lo.
Folha – Enquanto isso, o Vale do Silício tem alimentado o entusiasmo em torno da chegada de robôs humanoides e AGI. Como vê esse movimento?
Kate Darling – Robôs humanoides são muito difíceis de serem feitos, são superestimados, não entendo por que investem nisso. Parece uma visão muito limitante também.
Entendo que dá para ganhar dinheiro rapidamente colocando um humanoide em um trabalho para fazer o que uma pessoa faz. Pensarmos mais a longo prazo, em realmente mudar os fluxos e a organização do trabalho, exigiria um investimento maior, mas seria um uso melhor do dinheiro do que investir em humanoides.
Folha – Mesmo assim, várias grandes empresas estão investindo neles.
Kate Darling – Acho isso tão chato. É tão chato. Por que estamos tentando recriar algo que já temos? Poderíamos criar qualquer coisa. Poderíamos criar algo diferente.
Folha – Como um robô de estimação?
Kate Darling – Como um robô de estimação!
RAIO-X | Kate Darling
Especialista em robótica, é pesquisadora no Media Lab do MIT (Massachusetts Institute of Technology) e líder de ética e sociedade no Boston Dynamics AI Institute. É autora do livro “The New Breed: What Our History with Animals Reveals about Our Future with Robots” [A nova ninhada: O que nossa história com os animais revela sobre nosso futuro com os robôs], sem publicação no Brasil.