Por que a maçã não pode ter sido ‘o fruto proibido de Adão e Eva’, segundo a ciência

Spengler partiu das ciências humanas. Encontrou descrições de grandes frutos vermelhos na arte clássica, acreditando que as maçãs já eram coletadas pelo homem desde 10 mil anos atrás no sul da Europa. Sementes antigas em sítios arqueológicos corroboram a tese.

Mas a maçã moderna seria um híbrido de pelo menos quatro espécies silvestres. Aí veio o papel da Rota da Seda. Em busca de frutos que fossem mais atraentes ao mercado, agricultores da época começaram a selecionar as árvores que produziam maçãs mais apetitosas e a realizar enxertos (técnica horticultural que consiste em juntar partes – como galhos – de plantas diferentes para que cresçam juntas). Esses cruzamentos foram resultando em frutos mais semelhantes aos de hoje.

De acordo com o pesquisador, que lança este ano o livro Fruit From The Sands: The Silk Road Origins of The Foods We Eat, o nascedouro genético da maçã moderna está nas montanhas Tien Shan, na fronteira entre Cazaquistão, Quirguistão e China.

Macieira selvagem em Tien Shan, a ancestral da moderna maçã
Legenda da foto,Macieira selvagem em Tien Shan, a ancestral da moderna maçã

A natureza também fazia sua parte. No período entre o fim da Era do Gelo e o início da Era Cristã, Europa e Ásia estavam muito mais cheias de animais selvagens de grande porte – parte deles depois extinta. Cavalos selvagens, cervos maiores e outros bichos do tipo corriam em bandos, livremente.

As artimanhas evolutivas, em sua complexidade, carregam uma verdade simples: frutos pequenos “querem” atrair aves – que os comem e acabam espalhando as sementes. Frutos grandes não podem ser carregados pelas aves. Evoluíram para ser apetitosos para bichos grandes. Foram esses bichos que se deliciaram e ajudaram a espalhar as maçãs.

“Considerando que os frutos são adaptações evolutivas para a dispersão das sementes, a chave para entender a evolução dos frutos está na compreensão de que frutos os animais estavam comendo no passado”, pontua Spengler.

Entretanto, ao contrário das aves, os mamíferos não levam as sementes para tão longe assim. É por isso que, conforme concluiu o pesquisador, geneticamente as maçãs selvagens são diferentes em diversas zonas consideradas “de refúgio glacial” desde a Era do Gelo. Elas não se espalharam muito. Evoluíram a seu modo, em suas variedades.

Cavalos comendo maçã na região de Tien Shan
Legenda da foto,Cavalos comendo maçã na região de Tien Shan

Rota da Seda

Essas “ilhas” de maçãs foram rompidas com a ação humana, de modo especial ao longo da Rota da Seda. As árvores passaram a ter contato umas com as outras. Abelhas e outros polinizadores se encarregaram de fazer sua parte. A descendência híbrida resultante originou frutos maiores, o que despertou a atenção dos humanos – que acabaram dando uma mãozinha, replantando mudas das árvores mais favorecidas e realizando enxertos.

Spengler ressalta que esse processo, por conta da ação humana, foi muito mais rápido do que ocorreria em condições naturais. “O processo de hibridização não é o mesmo para todas as plantas. Ainda não sabemos muito sobre como isso ocorre em árvores de longa duração”, comenta o cientista. “Há centenas de plantas domesticadas no planeta. Muitas das quais tomaram caminhos diferentes para a domesticação.”

A maçã é resultado da megafauna pós-Era do Gelo e dos mercadores da Antiguidade, portanto.

Vendedora de maçãs em Bukhara, vendendo uma variedade amarela cultivada no Uzbequistão
Legenda da foto,Vendedora de maçãs em Bukhara, vendendo uma variedade amarela cultivada no Uzbequistão

Mas, como costuma acontecer com plantas domesticadas, a oferta atual de maçã se resume a poucas variedades.

“Embora milhares de tipos de maçã sejam conhecidos em todo o mundo, apenas vinte variedades estão amplamente disponíveis nos supermercados”, diz a historiadora e escritora Erika Janik, no livro Apple: A Global History. “Essas vinte variedades respondem por 90% de todas as maçãs consumidas. As maçãs foram uma das primeiras frutas cultivadas por seres humanos e seguem sido uma das frutas mais importantes da Europa, América do Norte e outras regiões temperadas do globo – tanto para comida quanto para bebida. Mas hoje se tornaram commodities globais, valorizadas mais por sua longa vida útil e capacidade de armazenamento do que por sua variedade e sabor surpreendentes.”

Sua adaptabilidade é impressionante. “Nascida nas montanhas do Cazaquistão, viajou pelo mundo e se tornou, por sua própria prodigalidade e apego das pessoas, uma espécie ‘local’ em quase qualquer lugar”, escreve Janik.

Simbologia

No relato bíblico da criação o mundo, no livro do Gênesis, Eva desobedece a ordem de não comer o fruto da frondosa árvore do paraíso. Experimenta, gosta e acaba oferecendo-a a Adão.

A fruta acabou sendo descrita como maçã. E é assim que aparece em pinturas e se configurou no imaginário humano.

O relato original, contudo, não menciona nome algum. Diz que era o “fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal”. A ideia de considerar esse fruto uma maçã veio aos poucos, muito provavelmente por obra dos antigos tradutores da Bíblia. Ao versarem o texto do grego antigo para o latim, eles utilizaram a palavra “pomum”. Que acabaria sendo maçã, nas línguas modernas – mas poderia ser qualquer fruto com formato semelhante, como figo ou pera.

Uma outra versão também corrente entre pesquisadores é a de que a fruta acabou sendo chamada de maçã por causa de uma confusão entre as palavras malus – do latim, significando mal – com malum – do grego antigo, que significava maçã.

Fato é que a fruta tornou-se símbolo de pecado e tentação. Mas também de conhecimento. A historiadora Janik afirma que a maçã traz, nas diversas culturas, significados de amor, imortalidade, dom e amizade.

No livro apócrifo de Enoque, a árvore do Éden é descrita como “uma espécie de tamarineira, produzindo frutos que se assemelhavam a uvas”. O antigo texto diz que a “fragrância” podia ser sentida a uma distância considerável.

Cultura

Um dos doze trabalhos de Hércules, da mitologia grega, foi colher as maçãs de ouro de um jardim, após matar o dragão de cem cabeças que o guardava. Na fábula da Branca de Neve e os Sete Anões, a moça é envenenada com uma maçã. A caricatura sobre a descoberta da gravidade traz o cientista Isaac Newton (1643-1727) concluindo sobre a existência da força depois de ser acordado de um cochilo embaixo de uma macieira: com uma fruta caindo-lhe sobre a cabeça.

Essa onipresença da maçã enquanto símbolo encontra explicação na abundância do fruto em zonas temperadas. Como pontuou o escritor americano Henry David Thoreau (1817-1862) em seu livro Wild Apples, as maçãs são frutos cuja história está conectada à humanidade.

“Tanto em folclores europeus, asiáticos quanto norte-americanos, maçãs são sinais de amor e fertilidade”, pontua Janik, no livro Apple: A Global History. “A associação não surpreende, já que a maçã está ligada ao amor e ao desejo. Dramaturgos gregos, como Aristófanes e Teócrito, escreveram frases sobre a semelhante da maçã com os seios de uma mulher, em uma refrão visual que se repete ao longo de toda a arte ocidental.”

“Imiscuídas no folclore e na história das nações ao redor do mundo, as maçãs têm sido associadas com amor, beleza, sorte, conforto, prazer, sabedoria, tentação, sensualidade e fertilidade – tudo isso além de ser simplesmente boa comida e bebida”, enumera a historiadora. “Ela alcançou proeminência global através de sua adaptabilidade às culturas e climas locais.”

Atualidade

Da Antiguidade para os dias atuais, a maçã segue sendo ícone. Incorporado, é claro, pela indústria cultural. O apelido de Nova York, por exemplo, “a grande maçã”, começou de maneira pejorativa e foi assumido pelo marketing de turismo.

O termo apareceu pela primeira vez no livro The Wayfarer in New York, publicado em 1909. O autor, Edward S. Martin, usou uma metáfora para criticar a maneira como os recursos públicos eram distribuídos nos Estados Unidos. Ele descreveu o país como uma grande macieira. Então provocou: se Nova York era apenas mais um dos frutos dessa árvore, por que “a grande maçã” deveria receber valores desproporcionais?

Nos anos 1920, o jornal New York Morning Telegraph teve uma coluna de notícias esportivas intitulada Around The Big Apple. Anos mais tarde, o apelido começou a ser disseminado por músicos de jazz. Mas o nome caiu feito maçã na boca do povo após uma campanha para promover o turismo por lá, nos anos 1970 – o governo assumiu o codinome e o mundo passou a se referir a Nova York como The Big Apple, a Grande Maçã.

Em 30 de agosto de 1968, os Beatles lançavam o single Hey Jude, com Revolution no lado B, e que tinha a foto de uma maçã verde no miolo do compacto. Era o primeiro lançamento dos Beatles pelo selo Apple – inaugurado pelo grupo britânico, com a intenção de mais do que uma gravadora, ser uma fundação artística. Conforme conta o escritor Stefan Granados no livro Those Were the Days, an Unofficial History of the Beatles Apple Organization 1967-2002, não deu tão certo assim. Segundo ele, foi uma experiência “idealista que acabou mal”. “[A Apple] é lembrada como uma infeliz empresa que os Beatles imaginavam que se tornaria uma manifestação corporativa da cultura jovem da década de 1960”, diz ele.

Entretanto, sem dúvida o caso mais bem-sucedido do uso da maçã por uma empresa tem nome e sobrenome: Steve Jobs (1955-2011). Por causa do inventivo empresário, o logo de uma maçãzinha mordida estampa computadores, laptops, celulares, relógios e muitas outras traquitanas tecnológicas do mundo hoje.

Jobs disse que teve a inspiração para o nome da empresa, fundada em 1976, depois de visitar uma fazenda de cultivo de maçãs, na Califórnia. Ele costumava dizer que o nome “apple” funcionava por ser “divertido, animado e, ao mesmo tempo, não intimidar”.BBC