“Vamos a novos territórios”, disse Joseph Blatter, então presidente da Fifa, depois de anunciar, em 2010, a surpreendente escolha do Catar para sediar a Copa do Mundo masculina de futebol de 2022.
“O Oriente Médio estava esperando – e eu diria que o mundo árabe estava esperando havia muito tempo para ter a Copa do Mundo. Agora, vocês a têm.”
A escolha chamou a atenção do mundo por muitos motivos. Por que um país sem nenhuma tradição futebolística ou infraestrutura esportiva seria escolhido para o evento global?
O Catar é um país com menos de 3 milhões de habitantes e a metade do tamanho de Sergipe, o menor Estado brasileiro. Na época do anúncio de Blatter, o Catar não tinha nenhum estádio apto a sediar a Copa, nem infraestrutura suficiente para receber ou acomodar os visitantes do evento.
Também enfrenta temperaturas escaldantes – e perigosas – que comumente passam dos 40°C no verão (o que forçou a Copa a ser jogada no inverno do Hemisfério Norte).
Desde 2010, o Catar tem estado sob escrutínio intenso, tanto pelas denúncias de corrupção envolvendo a Fifa, quanto pelos gastos bilionários com os preparativos, os abusos de direitos humanos e as condições degradantes vividas pelos trabalhadores desta Copa de 2022 (mais detalhes a seguir).
No último mês, o próprio Blatter declarou à imprensa que o Catar foi um “erro” e uma “má escolha”, por ser um país “muito pequeno, e a Copa do Mundo é muito grande”.
Mesmo antes de começar, a Copa do Catar já está sendo chamada de a “mais polêmica e politizada da história”.
Mas o que, então, o Catar ganha em troca? O prestígio trazido pela Copa do Mundo é suficiente para compensar a exposição negativa e os gastos bilionários?
Analistas da geopolítica do Golfo Pérsico explicam que, na verdade, o pequeno país concilia preocupações antigas com ambições de longo prazo nos cenários regional e global.
País que colocou a si próprio no mapa
É preciso enxergar a Copa do Mundo como o ápice de um rápido – e ainda em curso – processo de reformas e abertura do Catar, explica à BBC News Brasil Chris Doyle, diretor do Conselho para Compreensão Árabe-Britânica (Caabu, na sigla em inglês).
Ele diz que o ponto-chave na história é 1995, quando o xeique Hamad Ibn Khalifa Al-Thani tomou o poder do Catar de seu próprio pai (e em 2013 abdicou em favor de seu filho, o atual emir Tamim Ibn Hamad Al-Thani).
Naqueles meados dos anos 1990, diz Doyle, o Catar era um país voltado para si, de população pesqueira e pobre, ainda incapaz de explorar plenamente suas reservas de gás e petróleo.
“Não havia a infraestrutura que tem agora, não se servia álcool em hotéis, não havia a Catar Airways, o aeroporto era muito pequeno. Hamad expulsa seu pai e assume o poder e tem uma agenda. Avança na infraestrutura do gás, e quer claramente tornar o Catar um destino para eventos – algo que é relevante para entender a Copa do Mundo”, explica Doyle.
O resultado é que o Catar começou a construir museus, abrigar torneios esportivos internacionais (como os Jogos Asiáticos de 2006) e atrair universidades ocidentais para parcerias. Também passou a sediar a gigante midiática Al-Jazeera e uma base militar americana a partir de 1996, como forma de proteção contra seus vizinhos.
Com isso, o Catar colocou a si próprio no mapa, afirma Doyle.
“Políticos britânicos que sequer sabiam que o Catar existia ou como pronunciar seu nome começaram a prestar atenção ao país. (…) Grandes eventos começaram a acontecer. Então a Copa do Mundo, de muitas formas, é o ápice desse processo. Não poderia ter acontecido sem todas essas mudanças que aconteceram antes. E acho que isso foi a forma máxima de dizer: ‘o mundo vai vir a nós’. E isso, de certa forma, será o legado (do atual emir).”
O interesse do Catar em sediar a Copa foi justamente o ponto de partida do documentário de rádio “Como vencer a Copa do Mundo”, da BBC Radio 4, apresentado pelo jornalista David Conn, do jornal The Guardian e autor de The Fall of the House of Fifa (A Queda da Casa da Fifa, em tradução livre).
No documentário, Conn ouve especialistas que explicam que o pequeno país nunca terá um Exército de tamanho suficiente para garantir a própria segurança. Então, buscou outra estratégia na arena internacional.
“O Catar se vê seguindo um modelo estabelecido no século 17 pelo próprio profeta Maomé, que criou em Medina um lugar onde tribos que estivessem competindo entre si pudessem conviver em sociedade, e disso nasceu o próprio islã”, explica ao programa Allen Fromherz, diretor de Estudos de Oriente Médio da Universidade do Estado da Geórgia e autor de livros sobre a história do Catar.
“Então, o Catar vê seu papel como uma reflexão de algo profundo não só da cultura árabe, mas do islã, de trazer a resolução de conflitos na região, e em consequência obter uma recompensa para seu próprio povo, que é a autoridade. É exatamente isso que o Catar tem tentado ser, um fórum.”
‘Política de proteção e projeção’
Nesse papel, diz Fromherz, o Catar conseguiu simultaneamente abrigar a base militar americana e receber a visita de líderes do grupo radical Talebã – um adversário de longa data dos EUA. Assim, se cacifou para ajudar a mediar o conflito entre ambos e também outros, como o conflito entre Etiópia e Eritreia, e disputas territoriais de países como o Líbano ou o Chade, por exemplo.
Segundo Fromherz, é dessa perspectiva que deve ser visto o interesse do Catar ao sediar a Copa do Mundo.
“A Copa do Mundo meio que representa simbolicamente esse papel mais amplo em que o Catar se vê, de ‘somos quem negocia soluções, somos uma parte indispensável desta região e deste mundo, e será muito ruim se formos engolidos por um vizinho, ou se formos ameaçados apesar da nossa imensa riqueza’. Então é uma política de proteção, mas também de projeção.”
‘Sportswashing’ e passado colonial
Mas o Catar também é acusado de usar o evento para mascarar um histórico de desrespeito aos direitos humanos e trabalhistas. É o que se chama de “sportswashing”: usar o prestígio e a positividade associados ao futebol para ofuscar aspectos negativos de um governo ou sociedade.
No Catar, isso tem sido levantado sobretudo em três pontos: exploração de imigrantes, direitos das mulheres e perseguição à população LGBTQI+.
Para construir sua até então inexistente infraestrutura e seus estádios, o Catar importou estimados 5 milhões de trabalhadores migrantes vindos em sua maioria de países pobres do sul da Ásia, como Nepal e Bangladesh.
Estima-se que milhares deles tenham morrido de problemas de saúde relacionados ao trabalho intensivo sob o calor escaldante do verão.
Por anos, esses trabalhadores foram trazidos por meio de um esquema de vistos conhecido como Kafala, em que eles entravam no país patrocinados por empregadores – e só podiam mudar de emprego ou mesmo sair do país com autorização desses empregadores.
O sistema, que chegou a ser equiparado a uma espécie de escravidão moderna, foi abolido em 2016 pelo governo catari, dando mais flexibilidade e proteção aos trabalhadores.
O governo catari promoveu a mudança como parte do processo de reformas pelo qual o país tem passado.
“As novas mudanças na legislação, combinadas com fiscalização e compromisso a reformas sistêmicas, não só no Catar mas nos países de origem (dos migrantes), vão garantir que os direitos dos trabalhadores sejam respeitados”, disse o governo na época.
Mas, na ocasião, a ONG Anistia Internacional afirmou que a mera mudança legal era insuficiente para proteger os migrantes de abusos sistemáticos.
Chamando o evento no Catar de “Copa do Mundo da vergonha“, a ONG afirma que os trabalhadores migrantes viviam em condições sub-humanas, recebiam menos do que lhes fora prometido e tinham sua liberdade de ir e vir restrita.
O Catar, além de promover mudanças, se justificou jogando a culpa na herança colonial britânica: muitas leis trabalhistas remetiam à época em que o país foi um protetorado do Reino Unido, entre 1916 e 1971 – período em que o governo britânico se comprometia a garantir a proteção do Catar em troca do controle sobre a política externa catari.
Embora isso tenha feito com que a responsabilidade histórica tenha se estendido também ao Reino Unido, críticos afirmam que isso não serve para justificar as práticas atuais.
“Devemos reconhecer essa história, mas devemos pôr fim (a essas práticas), independentemente de quem as começou”, disse à BBC Radio 4 Rothna Begum, pesquisadora sênior de Oriente Médio e Norte da África da organização Human Rights Watch.
Para Chris Doyle, é importante jogar luz nos problemas enfrentados pelo Catar, mas de modo construtivo e sem “arrogância”, sob o risco de criar resistência a reformas mais profundas no país.
“Tem havido uma cobertura hostil, nem sempre merecidamente, sobre a Copa do Mundo. Sim, deve haver críticas quanto a direitos trabalhistas e LGBT, mas já vi comparações com o regime do apartheid na África do Sul, ou com os regimes de China e Rússia. Sendo que a situação no Catar não é nem remotamente parecida com a desses países – nem com o que a China faz com (a minoria étnica) uigur ou com a invasão russa do seu vizinho (Ucrânia)”, afirma Doyle à BBC News Brasil.
“Meu medo é que se crie um ressentimento e um cansaço que impeça que mais reformas aconteçam. Por isso peço um diálogo crítico, mas não boicotes. Acho que há muita arrogância na Europa – basta ver a forma como muitos países tratam seus imigrantes. (…) Não temos o monopólio da boa governança”, agrega o britânico.
Diretos de mulheres e homossexuais
E há, também, intensas críticas à forma como mulheres e homossexuais são tratados no país.
A homossexualidade é proibida por lei no Catar, e a punição varia de multas à pena de morte. Em declarações recém-publicadas pela emissora alemã ZDF, um dos embaixadores da Copa catari, Khalid Salman, afirmou que relações entre pessoas do mesmo sexo “são ‘haram’ (proibidas) porque danificam a mente”.
Ao mesmo tempo, diversas autoridades têm destacado que o Catar está em processo de reformas e de abertura social e política, e que “todos são bem-vindos” à Copa do Mundo. Dito isso, o executivo-chefe da organização da Copa, Nasser al-Khater, declarou também que o governo não pretende mudar as leis relacionadas à homossexualidade e pediu que visitantes “respeitem nossa cultura”.
Quanto às mulheres, o conservadorismo social e religioso no país as força a serem submetidas a uma espécie de tutoria por parte de homens – e só com a permissão masculina podem se matricular numa universidade, por exemplo.
“É como ser menor de idade a vida inteira”, disse à BBC a catari Zeinab (nome fictício, para proteger sua identidade), que hoje mora no Reino Unido.
“Para cada grande decisão de vida, você precisa de autorização explícita por escrito de um guardião homem, geralmente o seu pai, mas se ele não estiver vivo, então é o seu tio, irmão ou avô. Se você não tiver autorização, não pode tomar nenhuma decisão – seja entrar na universidade, estudar no exterior, viajar, se casar, se divorciar.”
Aposta milionária na candidatura
Por fim, na raiz de toda a discussão está a própria escolha do Catar como sede da Copa por parte da Fifa, em detrimento dos demais países candidatos (Japão, Austrália, Coreia do Sul e Estados Unidos).
O Catar nega que tenha havido qualquer tipo de corrupção na campanha do país perante a Fifa, e uma investigação interna do comitê de ética da federação não identificou irregularidades.
Mas uma investigação do Departamento de Justiça dos EUA tornada pública em 2020 acusou três membros do comitê executivo da Fifa – entre eles o brasileiro Ricardo Teixeira – de terem recebido suborno para votar tanto no Catar para a Copa de 2022 como na Rússia para o torneio de 2018.
Ricardo Teixeira negou as acusações na época, e sua defesa afirmou que se tratava de uma retaliação americana por ele ter votado no Catar, e não nos Estados Unidos, para sediar a Copa.
O jornalista David Conn lembra que, dos 24 membros do comitê executivo da Fifa com voto em 2010, mais da metade foram indiciados sob acusações diversas de corrupção ou banidos do futebol por quebra de conduta ética. No entanto, Conn não acha que isso baste para explicar a escolha do Catar para a Copa de 2022.
“É errado achar que a candidatura foi vencedora por conta de envelopes cheios de dinheiro”, ele explica no programa da BBC Radio 4.
Conn e seus entrevistados argumentam que a estratégia do Catar foi fazer uma campanha milionária em favor de sua candidatura – incluindo o então presidente francês, Nicolas Sarkozy.
Seguindo Joseph Blatter, a pressão teria incluído também o ex-jogador francês Michel Platini – então presidente da Uefa, confederação do futebol europeu. Platini sempre negou a afirmação.
Não por coincidência, eles argumentam, o fundo de investimentos Qatar Sports Investments posteriormente adquiriu o clube francês Paris Saint-Germain.
O Catar também investiu na época em embaixadores de peso para promoverem a candidatura do país, como o ex-jogador francês Zinedine Zidane e o técnico Pep Guardiola. Há estimativas que indicam que o Catar teria gasto mais com embaixadores do que todos os demais países gastaram em todo o custeio de promoção da sua candidatura.
‘Segurança pela notoriedade’
Rebatendo as críticas recebidas nos últimos anos, o emir do Catar, Tamim Ibn Hamad Al-Thani, disse que “há décadas, o Oriente Médio sofre discriminação, e descobri que essa discriminação vem em grande parte de pessoas que não nos conhecem e, em alguns casos, se recusam a nos conhecer”.
O emir afirmou estar “orgulhoso do desenvolvimento, reforma e progresso” de seu país.
Mas, com tantas acusações, vai valer a pena para o Catar ter ficado sob os holofotes?
Tanto Rússia como Brasil, sede dos dois torneios anteriores, viram sua situação social, política e econômica ficar ainda mais complexa depois da Copa do Mundo.
Chris Doyle diz que tudo dependerá de como transcorrerá a Copa em si, mas ele lembra que o Catar já passa por um processo enorme de mudanças, embora continue sendo uma sociedade bastante conservadora.
“Há muitos que acham que talvez a Copa tenha vindo cedo demais para o Catar, que o país precisaria ter tido mais dez ou 20 anos de um processo de reformas graduais, debate sobre questões tabu como a LGBT. (…) Mas também falta entendimento (internacional) da enorme jornada pelo qual o país passou” em termos de abertura econômica, social e política e de infraestrutura em poucas décadas, detalha Doyle.
“O Catar é irreconhecível de quando eu estive lá pela primeira vez, nos anos 1990. As pessoas dizem que o ritmo de mudança é tamanho que se você passar seis meses fora não saberá mais como o sistema viário funciona quando você voltar.”
É possível que alguns ganhos, inclusive, já tenham ocorrido. O jornalista investigativo de esportes Tariq Panja lembrou, no documentário da BBC Radio 4, a crise diplomática vivida em 2017 pelo Catar, quando seus vizinhos Egito, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Bahrein acusaram o governo catari de patrocinar terrorismo e impuseram um bloqueio comercial que durou quatro anos.
Panja acha que a notoriedade dada pela Copa do Mundo foi crucial para o Catar obter apoio internacional.
“Se ninguém tivesse ouvido falar desse lugar (o Catar), a gente se importaria com o caso? Acho que não. Talvez (a Copa) dê segurança pela notoriedade. Não é só o Catar, é ‘o Catar, sede da Copa’. Algo que carrega certo poder.”
– Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/internacional-63662704