Uma versão modificada da substância foi capaz de proteger camundongos da morte frequentemente causada pela peçonha do réptil.
A ideia é que a rutina succinil, como é conhecida a molécula, seja usada no futuro como adjuvante (auxiliar) do soro antiofídico, que deve continuar a ser o tratamento-padrão para as picadas das serpentes.
O soro é produzido a partir do próprio veneno de cada espécie de cobra e corresponde a um coquetel de anticorpos capaz de neutralizá-lo. O problema é que alguns efeitos do envenenamento continuam ocorrendo mesmo quando o soro é aplicado, e nem sempre o acesso a ele é fácil. Por causa disso, a substância adjuvante seria bem-vinda.
“Ainda precisamos levar muitos detalhes em consideração antes de pensar num teste clínico [em seres humanos], até porque não é fácil controlar as circunstâncias nas quais uma pessoa é picada”, disse à Folha o diretor do Laboratório de Fisiopatologia do Butantan, Marcelo Santoro, responsável por coordenar o estudo. “Mas temos um caminho interessante a explorar daqui para a frente.”
Os resultados da pesquisa foram publicados recentemente na revista especializada Frontiers in Pharmacology por uma equipe que inclui Santoro, sua orientanda de doutorado Ana Teresa Azevedo Sachetto e outros colegas.
Segundo o pesquisador do Butantan, o principal avanço do trabalho foi mostrar que era possível modificar quimicamente a rutina, cujo potencial antiveneno já era conhecido, para que ela se tornasse solúvel em água e, portanto, pudesse ser administrada nas veias do paciente (ou, no caso, dos camundongos de laboratório), potencializando sua ação.
Entre as consequências da picada estão o forte inchaço, hemorragias no nariz e nas gengivas, vômitos com sangue, queda na presença de plaquetas (o que dificulta a coagulação), pressão baixa e taquicardia. Nos casos mais grave, há falência dos rins, hemorragia no cérebro e morte.
Com base em estudos anteriores, já se sabia que a rutina tem efeitos anti-inflamatórios e anti-hemorrágicos que podiam se revelar valiosos em situações como uma picada de jararaca.
Além disso, a obtenção da molécula é relativamente simples e barata. Mas ainda era preciso levar em conta possíveis alterações em sua eficácia quando ela é ingerida, já que a passagem pelo sistema digestório poderia modificar suas propriedades. A equipe do Butantan, por isso, concentrou seus esforços em criar uma variante da molécula que fosse solúvel em água e, portanto, injetável.
“Usamos um método bastante simples, que funciona na escala de laboratório e precisaria ser adaptado para uma produção em escala maior”, conta Santoro.
O resultado, a rutina succinil, passou a ser administrada a um grupo de camundongos que também recebeu doses variáveis do veneno, entre média e elevada. Como controle, outros roedores receberam apenas o veneno de jararaca.
Em laboratório, nenhum dos animais que recebeu a dose mais baixa da peçonha morreu, mas dois terços dos que foram submetidos à dose elevada morreram após 48 horas -no caso daqueles que não se beneficiaram da ação da rutina succinil. Por outro lado, entre os camundongos que receberam a molécula modificada, não houve nenhuma morte.
As análises mostraram ainda que as perturbações que normalmente afetam a coagulação do sangue foram parcialmente barradas pela rutina succinil, a qual também ajudou a evitar hemorragias localizadas.
Apesar do sucesso da abordagem intravenosa, Santoro diz que os pesquisadores não descartam pensar em outra formulação por via oral, desde que ela mantenha eficácia similar à da forma solúvel em água.
Isso porque a ingestão de um simples comprimido seria mais prática e rápida em situações com pouco acesso a recursos hospitalares, relativamente raros em áreas rurais onde acidentes com cobras podem acontecer. Segundo o especialista, há boas chances de a molécula ser útil contra picadas de diferentes espécies do gênero Bothrops.