Com a pandemia, endividamento do Brasil superou a marca inédita de 90% do PIB. Dúvidas sobre equilíbrio entre despesas e receitas, respeito ao teto de gastos e ritmo de reformas pressionam câmbio, inflação e juros, desestimulam investimentos e elevam as incertezas sobre ritmo de recuperação da economia.
Por Darlan Alvarenga, G1
As dúvidas sobre a saúde das contas públicas e a falta uma indicação clara sobre qual será a estratégia adotada pelo governo para frear e reverter a trajetória de forte alta do endividamento do Brasil têm elevado as preocupações em torno do chamado risco fiscal e dos rumos da economia.
A explosão da dívida pública e o risco de um descontrole da situação fiscal é apontado por analistas e investidores como um dos principais fatores de incerteza doméstica, podendo inclusive inviabilizar uma retomada sustentada da economia brasileira – que, em 2020, sofreu um tombo histórico em meio aos impactos da pandemia no novo coronavírus.
O problema não é novo. Desde 2014, o Brasil tem gastado mais do que arrecada com impostos, o que gera o chamado déficit primário e amplia o endividamento. Mas com a pandemia as despesas do governo dispararam e a situação se agravou, reacendendo a discussão sobre a urgência de medidas de ajuste fiscal.
As principais dúvidas do momento dizem respeito ao Orçamento de 2021: em meio a discussões sobre a criação de um programa substituto do Bolsa Família, há incertezas sobre se o teto de gastos (regra que não permite o crescimento das despesas acima da inflação do ano anterior) será respeitado e se o governo conseguirá dar prosseguimento à agenda de reformas estruturais.
Entenda a seguir as causas da piora nas contas públicas, as consequências diretas para a economia e vida dos brasileiros, e as saídas em discussão para evitar um agravamento da situação fiscal brasileira.
Explosão da dívida
Trajetória da dívida bruta do Brasil — Foto: Economia G1https://13451a0d13147017f72911eb404ce9bc.safeframe.googlesyndication.com/safeframe/1-0-37/html/container.html
A dívida bruta do setor público superou em setembro a marca inédita 90% do PIB (Produto Interno Bruto), o equivalente a R$ 6,53 trilhões, segundo dados do Banco Central. No final do ano passado, a dívida estava em 75,8% do PIB, tendo inclusive recuado ligeiramente ante 2018, na primeira queda em 5 anos. Veja no gráfico acima.
A chamada dívida bruta do governo geral é o principal indicador usado nas comparações internacionais de endividamento e engloba as contas do governo federal, estados, municípios e empresas estatais.
O Ministério da Economia estima que a dívida bruta do Brasil irá encerrar este ano em 96% do PIB, e admite que o endividamento tende a continuar subindo nos próximos anos. Pelas estimativas atuais, chegaria a 100,8% do PIB em 2026, e só então passaria a cair.
“Em 2020, a dívida vai ter aumentado em relação a dezembro do ano passado em torno de 20 pontos percentuais. É um aumento enorme. Esse é o problema, essa é a crise fiscal”, afirma Fernando Veloso, economista e pesquisador do Ibre/FGV.
Na avaliação do especialista em contas públicas da consultoria Tendências, Fábio Klein, mantido o atual cenário, a dívida pública poderá beirar 100% do PIB “entre este ano e ano que vem”.
“Com o teto de gastos e reforma da Previdência, estávamos num processo de melhora, numa perspectiva favorável para o médio prazo. Agora, estamos indo para um cenário pessimista, com um certo risco de que a trajetória da dívida só cresça, cresça, cresça, sem perspectiva de queda, uma vez que não estamos avançando nas reformas”, alerta.
Custo da pandemia
A explosão da dívida se deve sobretudo aos gastos públicos para aliviar os impactos da pandemia do novo coronavírus e à forte queda na arrecadação de impostos e tributos, resultado do tombo na economia em 2020.
Os gastos do governo para combater os efeitos da pandemia já chegam a R$ 587,5 bilhões, e o montante total de estímulos fiscais são da ordem de 8% do PIB, o dobro da média dos países emergentes (entre 3 e 4% do PIB), segundo levantamento do Ibre/FGV.
Até março, havia uma meta de déficit para as contas do governo de até R$ 124,1 bilhões em 2020. Entretanto, com o decreto de calamidade pública aprovado pelo Congresso Nacional não será mais necessário atingir esse valor.
Atualmente, o Ministério da Economia projeta um rombo de R$ 905,4 bilhões nas contas do setor público consolidado em 2020, sendo que o governo federal deverá responder sozinho por um déficit primário de R$ 880,5 bilhões neste ano – mais de 7 vezes a meta inicialmente estipulada para o orçamento de 2020.
Previsão de rombo nas contas do governo em 2020 — Foto: Economia G1
Diante da gravidade da crise e da necessidade de reforçar serviços de saúde e apoiar trabalhadores que se viram de uma hora para a outra sem renda, a explosão da dívida pública foi considerada justificável. O que preocupa agora é a trajetória das contas públicas.
“O gasto para combate da pandemia é aceitável e o investidor entendeu isso. A grande questão é que se contava que se voltaria à normalidade e para o caminho do ajuste fiscal passado o momento mais agudo da pandemia”, afirma Alex Agostini, economista-chefe da agência de classificação de risco Austin Rating.
Além de ter gastado muito com a pandemia, o Brasil já tinha um patamar elevado de endividamento. Vale lembrar que, antes mesmo da pandemia ,o país seguia ainda distante da nota de “grau de investimento”. A marca, perdida em 2015, é uma espécie de “selo de bom pagador” que assegura a capacidade do país de honrar seus compromissos financeiros.
“O Brasil gastou demais, provavelmente bem além do que deveria. Independente disso, a situação já era delicada e, agora, precisamos de um plano sobre o que fazer para trazer a dívida de volta para uma trajetória sustentável”, afirma Veloso.
Divergências entre o presidente Jair Bolsonaro e o ministro Paulo Guedes elevam as preocupações sobre a trajetória fiscal do país. — Foto: Adriano Machado/Reuters
Aumento da incerteza e teto de gastos
O risco fiscal pode ser traduzido pela combinação de uma situação crítica nas contas públicas e a falta de um plano crível e executável de estabilização da trajetória da dívida.
E a incerteza no país tem aumentado, uma vez que ainda não foi sequer definido o orçamento e a meta fiscal para 2021. Soma-se a isso as discussões sobre a possibilidade de se estender o período de calamidade pública e prorrogar o Auxílio Emergencial, além da indefinição sobre a criação e forma de financiar um novo programa social em substituição ao Bolsa Família, quem vem sendo batizado de Renda Cidadã.
“O que mais preocupa é o governo ainda não ter aprovado nem a LDO, que dá as diretrizes do orçamento, e nem, portanto o orçamento do ano que vem”, afirma Klein.
Em meio ao choque trazido pela pandemia e atritos entre o Executivo e o Legislativo, a agenda de reformas e medidas de ajuste fiscal como a PEC Emergencial e PEC do Pacto Federativo não avançaram, e a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) para 2021 corre o risco de não ser votada neste ano.
Outra grande preocupação diz respeito à manutenção e respeito ao teto de gastos, considerado hoje a única âncora fiscal e garantia de que o controle da dívida pública será perseguido.
“A maior preocupação hoje é se o governo vai cumprir ou não o teto ou dizer que está cumprindo, sem cumprir”, diz Veloso, lembrando a possibilidade que foi cogitada de se usar recursos de precatórios ou do Fundeb para financiar o novo programa social, que foi recebida como uma espécie de pedalada fiscal.
Miriam Leitão: renúncias fiscais podem ser opção para financiar o Renda Cidadã
Indefinição sobre novo programa social
Embora o ministro da Economia, Paulo Guedes, diga que o governo irá continuar com o Bolsa Família caso não encontre espaço fiscal para lançar o Renda Cidadã, a percepção entre os analistas é de que membros do governo continuam pressionando a equipe econômica para buscar uma forma de financiar o novo programa social.
“Infelizmente, o governo atual já está de olho na reeleição de 2020”, afirma Agostini. “O governo está discutindo um aumento de gastos sem ter a contrapartida disso”, critica.
Como se não bastassem o nó fiscal e a indefinição sobre o Renda Cidadã, o governo continua enfrentando dificuldades para cortar despesas e melhorar a arrecadação.
“Enquanto a gente deveria estar discutindo como gastar menos para criar um programa novo e até legítimo, estamos vendo apenas uma pauta de mais gastos”, afirma Klein citando a recente derrubada do veto do presidente Jair Bolsonaro à prorrogação da desoneração da folha de pagamento de empresas, que terá um impacto de R$ 9,8 bilhões nos próximos dois anos.
Pela regra do teto de gastos, o governo precisa necessariamente cortar outras despesas, uma vez que o mecanismo não permite o crescimento das despesas acima da inflação do ano anterior.
Uma alternativa citada pelos analistas para aumentar a receita sem criação de um novo imposto seria a revisão das renúncias tributárias (dinheiro que o governo deixa de arrecadar como forma de incentivo a alguns setores da economia), que hoje somam cerca de R$ 320 bilhões por ano.
“Num momento de crise fiscal, o país estar abrindo mão de 4% do PIB em renúncia fiscal de pessoas ou empresas que têm um sistema favorecido é algo que deveria ser reduzido”, afirma Veloso.
Efeitos no câmbio, juros e inflação
A falta de uma sinalização clara de estabilização da trajetória da dívida pública gera desconfiança nos mercados e já provoca reflexos no câmbio, curva de juros, aumentando inclusive os temores de que a inflação venha a disparar e a superar o centro da meta em 2021, fixada em 3,75%.
Além da forte desvalorização do real frente ao dólar em 2020, a percepção de maior risco fiscal fica mais evidente na recente subida nas taxas de juros de títulos públicos de prazo mais longo. Ou seja: diante de um maior risco de não receber o dinheiro de volta, o mercado está cobrando mais caro para financiar a dívida do governo.
Embora a taxa básica de juros permaneça na mínima histórica de 2% ao ano, os juros para títulos (papéis da dívida do governo) com vencimento daqui 10 anos estão atualmente em torno de 8%. Isso faz crescer as incertezas sobre se o governo conseguirá rolar a dívida (trocar a dívida que vencer por novos empréstimos, sem precisar pagar a totalidade) – e aumenta o risco de uma antecipação de altas da Selic (a taxa básica de juros), cuja previsão atual do mercado para o final de 2021 é de cerca de 3% ao ano.
A estratégia que passou a ser adotada pelo Tesouro Federal foi concentrar os leilões de títulos públicos em papéis de curto prazo (dívidas que precisam ser pagas em prazos mais curtos), o que provocou um aumento significativo da dívida a ser paga nos próximos meses, com quase R$ 650 bilhões vencendo entre janeiro e abril de 2021.
“Já estamos vendo um movimento de pressão inflacionária, os juros futuros estão aumentando e isso começa a pressionar o serviço da dívida. O Tesouro vai começar o primeiro quadrimestre de 2021 com uma certa dificuldade em rolar a dívida”, avalia Klein.
Riscos para a retomada da economia
A incerteza fiscal afeta também a confiança dos empresários, com impactos diretos na geração de empregos e no ritmo de recuperação da economia – que antes mesmo da pandemia ainda não tinha conseguido se recuperar das perdas da recessão de 2015 e 2016.
“Os empresários começam a ficam inseguros, não investem, deixam de fazer contratações formais e tudo isso afeta a economia”, explica Veloso, lembrando que a taxa de desemprego atingiu o patamar recorde de 14,4%.
O próprio governo reconhece a gravidade da situação das contas públicas. Em nota sobre objetivos e desafios para 2021, divulgada no dia 5 de novembro, o Ministério da Economia alertou sobre o risco “consequências negativas severas” como aumento de juros, queda do investimento, aumento do desemprego, queda da atividade econômica aumento da inflação.
“Quanto mais rápido esse problema for endereçado, mais rápida será a recuperação da economia brasileira”, afirmou. “Desistir da agenda de reformas significa desistir do processo que nos recolocará no caminho do crescimento sustentável de longo prazo. Com as reformas temos a retomada sustentável da economia, sem as reformas voltaremos aos voos de galinha”, acrescentou.
Para os analistas, no entanto, cabe ao governo mostrar mais empenho no diálogo com o Congresso e clareza sobre as medidas para garantir uma trajetória sustentável para as contas públicas e o resgate da confiança dos investidores.
“O risco fiscal crescente só alimenta mais o temor de que o governo está perdendo o controle do processo de endividamento”, afirma Klein.
“Sempre fica aquela dúvida se o governo não vai ser obrigado a mexer por exemplo na carga tributária para se financiar”, acrescenta Agostini.
Pelas projeções do mercado, mantido o cenário atual de incertezas, o Brasil só deverá voltar a registrar superávits a partir de 2026.
O chamado déficit primário é registrado quando o que o governo arrecada com impostos e contribuições é menos do que as despesas. A conta não inclui os gastos com o pagamento dos juros da dívida pública. No acumulado dos nove primeiros meses deste ano, as contas do setor público tiveram déficit primário de R$ 635,9 bilhões.
Trajetória anual das contas do setor público consolidado — Foto: Economia G1
Comparação com outros países
O Brasil deverá encerrar 2020 com um dos níveis mais altos de endividamento entre países emergentes.
De acordo com relatório do Ministério da Economia, a dívida pública bruta de 96% do PIB projetada para o final de 2020 ficará próxima da Argentina (98,1% do PIB), que tem um histórico recente de calotes.
Entre países de economia média, o Brasil está mais endividado que a África do Sul, que deverá encerrar 2020 com dívida bruta de 82,8%, e em situação bem mais crítica do que a de outros países emergentes. Veja quadro abaixo:
Comparativo da dívida projetada para emergentes — Foto: Economia G1
O nível de endividamento do Brasil preocupa não só pela rápida expansão como também pela dificuldade do país em engatar uma trajetória sustentável de crescimento do PIB e, consequentemente, de aumento da arrecadação e reequilíbrio das contas públicas.
“O problema é que o Brasil não cresce. A diferença hoje do Brasil para os demais países é que o governo não consegue colocar na mesa um plano de ajuste fiscal de médio e longo prazo. Então, ninguém consegue ver ainda quando essa relação dívida/PIB vai diminuir”, diz Agostini.
A estimativa atual do mercado é de um tombo de 4,8% do PIB em 2020 e alta de 3,31% em 2021, segundo a última pesquisa Focus do Banco Central, o que ainda será insuficiente para retomar o patamar pré-pandemia.