Desde maio, a região de Amambai, em Mato Grosso do Sul, registrou todo mês assassinatos ou tentativa de assassinato envolvendo povos originários – o mais recente nesta terça-feira (13). Polícia investiga se o óbito tem a ver com os conflitos agrários.
Por Renata Barros, g1 MS
Os conflitos envolvendo indígenas na região de Amambai (MS), município ao sul do estado, remontam há décadas. Neste ano, entretanto, houve um acirramento da violência na região. Mortes e tentativas de homicídio envolvendo povos originários vêm ocorrendo. Pelo menos um caso foi resultado dessa disputa. Em outros, a polícia ainda investiga, mas estariam relacionados a outras causas.
A 351 km de Campo Grande, Amambai tem uma reserva indígena de mesmo nome, que fica próxima ao perímetro urbano da cidade. Segundo o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), o local tem atualmente 2.429 hectares de terra, o que equivale a cerca de dois campos de futebol.
Este espaço é usado como morada para aproximadamente seis mil indígenas. Especialistas apontam que são muitas pessoas vivendo em uma pequena área. “Hoje essas reservas não têm mais condições de abrigar essas famílias, elas são muito pequenas”, afirma o membro do Cimi, Flávio Vicente Machado.
Nesta reportagem, você vai ver:
- Como foi o processo de demarcação da Terra Indígena Amambai;
- Como surgiram os conflitos entre indígenas e proprietários de terras na região;
- O que dizem pesquisadores, indigenistas e produtores rurais;
- Quais são os problemas enfrentados pelos indígenas que vivem na área;
- O que dizem as autoridades.
Histórico de violência
Em maio de 2022, o indígena guarani-kaiowá Alex Recarte Vasques Lopes, de 18 anos, foi morto em uma fazenda, em Coronel Sapucaia (MS), cidade a 44 km de Amambai.
Alex saiu da Reserva Taquaperi para buscar lenha em uma área ao entorno da terra indígena, segundo divulgou o Cimi. De acordo com o Conselho, fotos mostram o corpo de Alex com pelo menos cinco orifícios compatíveis com projéteis de armas de fogo.
Em junho, um confronto entre os guarani-kaiowá e policiais do Batalhão de Choque, da Polícia Militar, deixou vários feridos em uma propriedade rural em Amambai. Para os indígenas, as terras fazem parte do território Guapoy, que pertencia aos ancestrais dos povos originários e seria parte da reserva.
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Território Guapoy, considerado sagrado pelos indígenas, ficou de fora da área demarcada da Terra Indígena Amambai — Foto: Arte/g1
No mês seguinte, os indígenas guarani-kaiowá vivenciaram novamente o luto pela morte de um membro da etnia. Márcio Moreira morreu na terça-feira (14) na cidade de Amambai. A vítima foi atingida por um disparo de arma de fogo, feito por dois homens que estavam em uma moto, afirmou uma liderança indígena.
Márcio estava em uma construção, onde foi chamado para trabalhar na obra. Ele estava acompanhado de outro homem, que conseguiu fugir e não foi atingido. A vítima morreu no local.
Em agosto, o indígena Vitorino Sanches, de 60 anos, sofreu um atentado na entrada da comunidade Amambai. O carro do comerciante foi atingido por pelo menos 15 disparos de arma de fogo, tendo dois deles atingido a vítima.
Carro de Vitor atingido por vários tiros durante tentativa de homicídio. — Foto: Reprodução/RedesSociais
Pouco mais de um mês da tentativa de homicídio, Vitorino foi executado com cinco tiros nas costas, em 13 de setembro.
Todas as mortes e tentativas de homicídio são investigadas pela Polícia Civil. Em dois casos, o de Vitorino e o de Márcio, que ocorreram na cidade, as mortes não estariam relacionadas a conflitos fundiários. Contudo, nenhum inquérito foi concluído ainda.
Onde tudo começou
Especialistas indicam que a origem dos conflitos envolvendo os indígenas e os proprietários das terras remontam há décadas, e têm a criação das reservas indígenas como plano de fundo.
Conforme o coordenador do Cimi em Mato Grosso do Sul, Matias Benno, a partir do início do século 20, houve a realocação de indígenas em reservas criadas pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI), que foi substituído pela Fundação Nacional do Índio (Funai) em 1967.
No território de Mato Grosso do Sul, que ainda não tinha se separado de Mato Grosso, foram criadas oito reservas indígenas com 3.600 hectares cada: Reserva Dourados, na cidade de mesmo nome; Amambai e Limão Verde, em Amambai; Pirajuí, em Paranhos; Porto Lindo, em Japorã; Caarapó, na cidade homônima; Taquaperi, em Coronel Sapucaia; e Sassoró, em Tacuru.
“A reserva é uma política muito cruel de confinamento. Os indígenas foram sendo retirados de vários lugares do estado, levados para essas reservas e colocados ali dentro”, comenta Matias Benno.
“Começou a ocasionar um problema muito sério, porque assim, eram muitas lideranças em um espaço diminuto, começaram conflitos”, pontua.
Diminuição de terras
Paralelo a isso, o coordenador do Cimi no estado comenta sobre a diminuição das terras das reservas ao longo dos anos, com o aval da União.
“O Estado ainda subtraiu mais territórios dessas reservas, que eram de 3.600 hectares pelo decreto de criação, mas foram sendo subtraídos ao longo do tempo. Então, se você for checar hoje a reserva de Amambai, você vai chegar à conclusão que mais de mil hectares que deveriam ser reserva não existem mais no perímetro. Tem fazendas que estão lá dentro, chácaras, empresas, enfim, que foram colocadas lá dentro de um território que já é pequeno, mas que deveria ser indígena, porque foi criado pelo Estado”, explica Matias Benno.
O professor de história da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), Thiago Cavalcante, comenta que em algumas reservas o número total de hectares nunca chegou a 3.600 hectares na prática.
“Todas as reservas foram criadas com 3.600 hectares no papel, agora na prática, quando vai se delimitar essas áreas, elas não atingem essa quantidade de hectares e algumas delas, inclusive, perdem ao longo do tempo”, cita.
Conforme o professor, é o caso da Terra Indígena Amambai. “Foi criada no papel com 3.600 hectares, mas depois teve uma pessoa particular que requereu uma parte da área e no final das contas o Estado acabou reconhecendo que parte da área era propriedade dessa pessoa privada. Então, o tamanho da reserva foi reduzido para cerca de 2.400”, comenta.
Em 1991, foi homologada a demarcação da Terra Indígena Amambai pelo Decreto Nº 277. Conforme o documento oficial, ficou caracterizada como área de ocupação tradicional e permanente indígena o território com a superfície de 2.429 hectares. Desta forma, o território ficou com 1.171 hectares a menos do que o previsto na criação das reservas indígenas.
“O que motiva essa redução é o assédio, o interesse dos proprietários privados que vão avançando sobre as terras com o passar do tempo”, explica o historiador Thiago Cavalcante.
A terra no local é fértil para a produção agrícola. “É uma terra muito produtiva. Geralmente se produz grãos, soja, na entressafra, o milho”, destaca Benno.
A área subtraída da área inicial da Terra Indígena Amambai é a que os indígenas chamam de Guapoy e buscam retomar, apontam os especialistas. Em nota divulgada em junho, o Cimi explicou que, para os guarani-kaiowá, “Guapoy é parte de um território tradicional que lhes foi roubado – quando houve a subtração de parte da reserva de Amambai”.
“O que motivou a retomada de Guapoy foram duas coisas. O assassinato do Alex, em um lugar que deveria ser reserva e o Estado subtraiu e colocou fazendas, gerando violência. E segundo, essa reivindicação histórica da devolução dos hectares deles de Amambai. O que eles fizeram foi, na verdade, ir para cima de uma área que na concepção deles sempre foi deles e lhes foi roubada”, conclui Matias Benno.
Transbordamento e conflitos internos
Com o passar dos anos, o número de habitantes das reservas, como a de Amambai, foi crescendo cada vez mais, o que provocou conflitos internos e um deslocamento de indígenas, conforme explica o membro do Cimi, Flávio Vicente Machado.
“O que acontece hoje é o chamado transbordamento. Os indígenas já não cabem mais e eles começam a ter que retornar aos territórios”, afirma.
Matias Benno destaca também o alto índice de violência interna. “Por exemplo, o grau de suicídio é altíssimo entre a juventude. Os problemas sociais causados pelo Estado denotam uma série de problemas internos e problemas externos também. Por exemplo, indígenas [sempre] são achados assassinados nos arredores, mas sempre são tratados como um número a mais”, opina.
Já Flávio Machado ressalta os outros tipos de violência existente dentro das comunidades. “Violência doméstica, violência contra a criança, porque é isso, você confinou essa população e ela não tem perspectiva nenhuma”, declara.
A falta de perspectiva atinge os indígenas em todos os âmbitos da vida, inclusive no que diz respeito a carreiras profissionais. “Há um racismo estrutural de toda sociedade envolvente, isso é muito comum, então os indígenas têm dificuldades e trabalham em tudo que podem, como mão de obra em colheitas, às vezes em situação análoga à escravidão, no interior de fazendas. Trabalham como pedreiros, trabalham com o que dá”, esclarece Matias Benno.
O que dizem os produtores rurais
Guapoy não é reconhecido como território ancestral pelos produtores rurais. O presidente do Sindicato Rural de Amambai, Rodrigo Lorenzetti, comenta que em 2002 um proprietário de terra fez um levantamento pericial da área que os indigenistas apontam como Guapoy.
“Está no processo do proprietário daquela época, onde se determinou que não havia discussão. Agora, se eles querem ampliação da aldeia é outra história. Essa conversa de que aquilo ali era área indígena, onde eles invadiram agora, e foi invadida por produtores não procede”, afirma.
“Não tem fazendas que ocupam o território, existem as fazendas que fazem o entorno, mas fazendas que ocupam o território de Guapoy não existe”, completa Lorenzetti.
Segundo o presidente, os conflitos por terras na região são organizados por grupos específicos com o apoio de minorias. “Esse fato que aconteceu aqui em Amambai foi um fato inflamado por conselhos como o Cimi, por algumas ONGs, em cima de uma minoria de indígenas que ali vivem”, cita.
“A gente vê isso como alguns grupos de fora que vem para dentro da aldeia, conversam com alguns índios, que entram nessa onda. Eu garanto que é uma pequena minoria, não é a maior parte da comunidade. Acabam que traz pessoas de outras regiões que concordam com essa ideia deles, vamos dizer assim, e fazem o que fazem ali”, pontua Lorenzetti.
O presidente comenta que o Sindicato Rural tem um bom relacionamento com os indígenas que moram na aldeia Amambai. “Como entidade, como produtor rural, como cidadão, a gente colabora com a comunidade indígena em muitas coisas. A gente faz cursos lá dentro de profissionalização, a gente apoia eles quando eles precisam de um óleo diesel para trator, quando precisa arrumar uma máquina, quando precisa plantar alguma coisa, então a gente tem esse bom relacionamento”, destaca.
Lorenzetti pontua a participação indígena no comércio local. “Eu acredito que a gente tenha aí perto de mil indígena que trabalham no comércio da cidade. Eles saem da aldeia todo dia, vêm para a cidade, fazem o serviço deles no comércio e voltam para casa”.
“Então, eles também querem esse bom relacionamento, porque a maioria deles quer a dignidade, quer poder trabalhar, ganhar o seu dinheiro e viver com uma certa dignidade”, diz.
Demarcação
A demarcação das terras indígenas é o processo de reconhecimento das terras pertencentes à identidade indígena e é apontado pelos especialistas como um direito previsto na Constituição Federal.
“Lá atrás, quando se começa o processo de colonização das terras do Brasil como um todo e do então estado de Mato Grosso, já havia proteção legal em relação às terras indígenas. Se a gente for atrás de dispositivos legais, vai remontar ao século 17, ainda durante o período colonial”, comenta Thiago Cavalcante.
Thiago cita a Lei de Terras de 1850. “Desde então se passou ao procedimento em que o acesso à terra por particulares se daria apenas através da compra, então o Estado passou a ‘vender’, entre aspas, porque os valores eram muito irrisórios, mas era um processo formalmente de compras, e essa Lei de Terras também reconhecia a posse, então o sujeito que tivesse uma posse anterior tinha que legitimar essa posse perante o Estado para poder ter a propriedade” explica.
“No caso dos indígenas, eles não precisavam fazer esse processo de reconhecimento, pelo menos a partir do pensamento de alguns juristas, como João Mendes Júnior, que é aquele que elaborou a tese do indigenato, que vai fundamentar a Constituição de 88”, detalha o historiador.
Segundo Cavalcante, a tese do jurista aponta o direito indígena à terra como um direito originário, congênito. “É um direito que precede os direitos civis de propriedade, então a Constituição de 88 recepcionou isso e determinou que a União demarque as terras indígenas em um prazo de cinco anos. Os povos indígenas, então, já detêm esse direito. O ato de demarcar terra é um ato declaratório, o Estado vai lá apenas reconhecer que aquela terra é indígena”, afirma.
Atraso na demarcação
Apesar de a Constituição Federal de 1988 estabelecer prazo máximo de cinco anos para a demarcação das terras indígenas, três décadas se passaram e a demarcação não foi concluída.
“O pior do que não ter acontecido [a demarcação] foi que esse processo de colonização foi cada vez mais se intensificando e agravando a situação, então hoje a densidade demográfica, sobretudo das reservas indígenas, é muito alta e os conflitos decorrentes disso também são altos. Por isso que os indígenas reivindicam o retorno às suas terras pelo processo de demarcação”, destaca o historiador.
Como o reconhecimento das terras não ocorre legalmente, os indígenas passam a retomar por conta própria às terras ancestrais, detalham os especialistas. “A retomada é um ato, digamos assim, que normalmente se decide fazer já depois de ter tentado negociar a demarcação por muitas e muitas vezes, só que não se tem uma resposta efetiva do Governo Federal”, diz Thiago Cavalcante.
São em ações de retomada que muitas vezes os indígenas perdem a vida. “Infelizmente, o Governo Federal cria uma situação histórica já de que ele não age, ele só acaba agindo depois que se tem um conflito violento e, é claro, normalmente as vítimas na maioria das vezes são os indígenas, que sofrem a violência e em alguns casos acabam até falecendo”, completa o professor de história.
A retomada às terras também ocorre desde a criação das reservas. “Desde quando eles começaram a ser removidos, no início do século passado, é constante o retorno deles. Há documentos do SPI de 1920, 1930, 1940, que demonstram que os indígenas iam e voltavam. Os fazendeiros colocavam no caminhão ou o próprio governo levavam para a reserva e dias depois estavam as famílias de novo lá na área. Isso gerava conflitos, inclusive há muitos registros de mortes nesse período”, cita o membro do Cimi, Flávio Vicente Machado.
Segundo o historiador Thiago Cavalcante, o atraso na demarcação de terras é uma decisão política. “Não é só do atual governo, mas o atual governo afirmou e até agora vem cumprindo essa afirmação de que não demarcaria nenhuma terra indígena, mas os governos anteriores também agiram muito pouco. Quando agiram, agiram sob pressão, então depois de um processo de retomada, depois de uma violência que repercutiu internacionalmente, então nunca houve uma ação concreta do Estado para promover a demarcação de forma ampla, de modo a atender à Constituição Federal”.
Os especialistas são firmes ao pontuar que a demarcação é fundamental para a solução dos conflitos na região de Amambai; no entanto, isso só ocorrerá a partir de uma vontade política que coloque em negociação o governo federal, os indígenas e os atuais proprietários das terras.
“Não havendo essa construção de uma vontade política, envolvendo os proprietários, o governo e os indígenas, a tendência é que os conflitos continuem acontecendo e até se agravem, porque o que nós temos visto é que a densidade demográfica nas reservas indígenas tem crescido ano a ano e até crescido mais do que se esperava. Então, as dificuldades da vida nas reservas tendem a se ampliar e consequentemente novas retomadas podem acontecer e o resultado disso geralmente acaba sendo a violência”, analisa Thiago Cavalcante.
“Se não tiver a demarcação, nada que você fizer vai solucionar, vai ser paliativo. Por exemplo, você pode até investir em construção de escola, posto de saúde, enfim, mas se não tem a terra para eles poderem produzir e principalmente solucionar os conflitos internos, não vai mudar”, destaca o membro do Cimi, Flávio Vicente Machado.
O presidente do Sindicato Rural de Amambai comenta que observa nos indígenas o desejo de trabalhar na própria terra. “O que a gente precisava fazer para resolver tudo isso de uma vez era justamente pegar e dar para eles essa condição para eles trabalharem na própria terra. […] A gente teria que ter um jeito, com autorização do Governo Federal, mudar essas leis, para a gente dar condições para os indígenas trabalharem, eles querem trabalhar”, comenta.
Para além da demarcação, especialistas também pontuam que medidas precisam ser criadas para apaziguar os problemas de décadas passadas, incluindo até questões ambientais.
“Essa terra não vem mais como era antes. Normalmente são terras degradadas, terras de pastagem, você não consegue mais produzir. Então, precisa também ter um programa federal e estadual, e aí daria para ter essa parceria, de recuperação dessas áreas e aí sim um programa de incentivo às produções e, enfim, gestão de território segundo os usos e costumes dessa população”, explica Flávio Machado.
Em uma palavra, Flávio resume décadas de violência, conflitos e luta. “Na nossa avaliação e de muitos especialistas, é um caminho para tentar solucionar toda essa tragédia, porque é isso, uma tragédia atrás da outra”, pontua.
Procurado, o Ministério Público Federal, por meio da Procuradoria da República em Mato Grosso do Sul informou que o procedimento que tramita no órgão a respeito do conflito em Amambai está sob sigilo e que a Funai, como responsável pelos processos demarcatórios, concentra as informações fundiárias sobre as áreas indígenas demarcadas ou em processo de demarcação.
O g1 procurou a Funai, que até o momento desta publicação não retornou o contato.