Maior preço em cem anos encerra era da comida barata

Segundo pesquisa Datafolha do final de março, 1 de cada 4 brasileiros afirma que a quantidade de comida disponível foi inferior à necessária para alimentar a família nos últimos meses.

O patamar atual supera as marcas do período da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e da primeira crise mundial do petróleo (1973-1974), segundo a ONU (Organização das Nações Unidas). Os dados do FMI sugerem que fica atrás somente do nível registrado após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918).

Ela tem por trás causas conjunturais, como a Covid-19 e a guerra; e estruturais, como o aumento da renda na Ásia e na África e mudanças climáticas, que tornam safras imprevisíveis.

No conjunto, esses fatores marcam o fim de uma era de alimentos relativamente baratos, que ajudaram a reduzir a pobreza e a fome no mundo na segunda metade do século 20.

Para o Brasil, a explosão nos preços de comida e combustíveis criou um paradoxo: enquanto a população empobrece e reduz o padrão alimentar, as contas públicas melhoraram e o risco fiscal diminuiu com o aumento da arrecadação de impostos gerado por mais receita com exportação de commodities, como grãos e petróleo.

Em março, o índice de preços de alimentos da ONU calculado pela FAO (Organização para Alimentação e Agricultura, na sigla em inglês) atingiu 159,3 pontos, batendo recorde anterior, de 1974 (137,4), e pressionado por todos os seus componentes: cereais, carnes, óleos, laticínios e açúcar.

Juntas e antes da guerra, Ucrânia e Rússia respondiam por 25% das exportações globais de trigo e 15% das de milho. O conflito também fez o preço do petróleo disparar mais de 45% neste ano, pressionando fretes e a cadeia de distribuição de alimentos.

Nenhum dos itens alimentícios no Brasil tem variação em 12 meses abaixo de dois dígitos. Mesmo sem contar commodities como grãos, o conjunto de hortaliças e legumes subiu 46,2% no período, segundo o IPC da FGV.

A estimativa pessoal de Braz para a inflação de alimentos neste ano é de 13%, bem acima dos 7,5% a 8,5% que o mercado prevê para o IPCA, índice oficial geral do IBGE.

O mundo vem numa sequência de choques que jogou os preços dos alimentos em outro patamar. Entre eles, os principais foram a guerra comercial entre Estados Unidos e China no governo Donald Trump (2017-2021), a pandemia e a guerra na Ucrânia.

“É um encadeamento inimaginável de choques conjunturais que acabaram tornando o problema meio estrutural, com a inflação de alimentos adquirindo vida própria”, afirma o economista e colunista da Folha Samuel Pessôa.

Ele pondera que o problema não seria tão grave se o mundo não tivesse passado pelo choque recente nos preços dos combustíveis causado pela guerra. As sanções do Ocidente à Rússia, no entanto, podem manter valores de petróleo, gás e fertilizantes pressionados por longo tempo.

Na quinta (14), a diretora-gerente do FMI, Kristalina Georgieva, disse que o mundo vive uma “crise sobreposta a outra” que podem elevar a desigualdade, aumentar a inflação e “fragmentar” a economia global.

Países muito dependentes da importação de alimentos e com contas externas frágeis seriam os mais afetados -e uma corrida em curso para aumentar estoques tende a pressionar mais os preços.

Mesmo antes da pandemia e da guerra na Ucrânia, o FMI já apontava para o fim do período alongado, até os anos 2000, de alimentos mais baratos.

Para José Eustáquio Alves, doutor em demografia e professor por duas décadas na Escola Nacional de Ciências Estatísticas do IBGE, uma série de fatores estruturais deve manter os preços dos alimentos em patamar elevado.

Alves destaca o aumento da renda em países populosos da Ásia, como China e Índia, sustentando preços (sobretudo de grãos e carnes), assim como o crescimento econômico e da população africana nos próximos anos.

Segundo o Banco Mundial, a população em extrema pobreza (vivendo com menos de US$ 1,90 ao dia) na África deve cair a 23% do total daqui a oito anos, ante 41% em 2015 -com taxas de crescimento econômico no continente superiores à média global, pelo menos até a pandemia.

Os africanos representam 17% da população mundial. Mas, ao contrário de China e Índia, onde a taxa de fecundidade está em queda, ao nível de reposição, a África deve colocar grande parte do 1 bilhão a mais de pessoas no planeta até 2043 (e 2 bilhões até 2070).

Alves destaca que outros fatores, como degradação de solos para agricultura, mudanças climáticas e falta de água tendem a exercer pressões crescentes sobre preços dos alimentos.

Para Sérgio Vale, economista-chefe da MB Associados, não é certo que mudanças climáticas possam ter impacto significativo na produção de alimentos, cujos preços em alta continuarão estimulando o aumento das áreas de plantio e a produtividade.

“Mesmo o aquecimento global pode abrir novas fronteiras, como norte da Rússia e Canadá, hoje muito frios”, afirma.

“Mas é certo que a demanda por alimentos seguirá crescendo, com o aumento da renda, sobretudo na Ásia, e da população, na África.”

Pelos seus cálculos, toda a cadeira do agronegócio representa cerca de 27% do PIB. Somados os setores de commodities minerais e combustíveis, a fatia sobe para 40%.

“O problema é que os 60% restantes vão muito mal. Mas há entrada de capital externo e aumento da receita tributária, melhorando as contas públicas e ajudando a reduzir o valor do dólar, moeda em que as commodities, como grãos, são denominadas.”

Mesmo assim, com o atual ritmo de aumento de preços, desemprego elevado e queda da renda (-8,8% em 12 meses), os brasileiros devem seguir pressionados pelos alimentos.

Segundo pesquisa Datafolha do final de março, 1 de cada 4 brasileiros afirma que a quantidade de comida disponível foi inferior à necessária para alimentar a família nos últimos meses.

Quanto mais pobre, mais a inflação de alimentos é percebida, pois habitação e comida consomem a maior parte da renda. Segundo estratificação do Datafolha, 53% das casas brasileiras atravessam o mês com menos de dois salários mínimos (R$ 2.424). Nelas, 35% acusaram falta de alimentos.

Levantamento da Rede Penssan ao final de 2020 (antes da disparada dos alimentos no ano passado e agora) mostrava que mais da metade (55%) dos brasileiros sofria de algum tipo de insegurança alimentar (grave, moderada ou leve).