A pesquisa foi feita durante os dias 5 e 24 de dezembro em 2.180 domicílios nas cinco regiões do Brasil, questionando os moradores sobre os três meses anteriores ao momento coleta
É o que mostram os dados do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, conduzido pela Rede Penssan (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional).
A pesquisa foi realizada no momento em que o auxílio emergencial foi diminuído de R$ 600 para R$ 300 e de R$ 1.200 para R$ 600 –quando a pessoa de referência era uma mãe solo–, afetando a renda de milhões de beneficiários.
Simone Aparecida da Silva, 35, participou das rodadas de R$ 1.200 e R$ 600. Moradora de Heliópolis, em São Paulo, ela é mãe de oito filhos e está grávida do nono. Três deles, porém, vivem em um abrigo. O valor que recebeu do governo permitiu que saísse da casa da mãe e comesse com mais qualidade. Quando ganhou a quantia menor, conseguiu pagar o aluguel, mas dependeu de doações para se alimentar. Sem auxílio, em poucos meses, teve que voltar.
As contas da casa se resumem ao aluguel de R$ 600. A renda vem dos bicos da mãe, que somam R$ 400, e de seu Bolsa Família e da irmã, que são de R$ 342 e R$ 259, respectivamente.
A principal medida do governo para diminuir o impacto da pandemia não foi suficiente. Entre os domicílios que receberam o auxílio emergencial, 28% viveram insegurança alimentar grave –ou seja, passaram fome– ou moderada e 37,6% viveram de forma leve. Já entre os que não receberam, 10,2% passaram por insegurança grave ou moderada, e a maior parte deles, 60,3% viveram em segurança alimentar.
Ser mãe solo diminui o nível de segurança alimentar no Brasil. Há ainda outro fator de agravamento: a raça. Simone é negra.
A fome atingiu 11,1% das casas chefiadas por mulheres. Quando o domicílio em que a pessoa de referência é um homem, esse número cai para 7,7%. A diferença na segurança alimentar entre os gêneros é consideravelmente maior: quando se trata de uma mãe solo, 35,9% das famílias têm a alimentação garantida, já no caso dos homens são mais que a metade, 52,5%.
Quando a pessoa de referência é negra, a fome está presente em 10,7% das casas, enquanto se ela é branca, 7,5%.
As condições de raça e cor, segundo Ana Segall, médica epidemiologista e pesquisadora da Rede Pensann, estão associadas à insegurança alimentar, sendo por si só determinantes do padrão alimentar das famílias.
“Essas condições, principalmente a questão de raça e cor, estão associadas à insegurança alimentar independentemente da renda, mas tendem a ocorrer nas camadas mais pobres da população”, diz.
Assim como a raça, as desigualdades regionais também impactam a segurança alimentar. O Norte e o Nordeste concentram menos domicílios com acesso pleno a alimentos.
No Norte, 18,1% das famílias passavam fome, enquanto 13,8% no Nordeste. Em comparação com a macrorregião Sul e Sudeste, agrupadas na pesquisa, a fome atingiu 6%. No Centro-Oeste, foram 6,9%. .
Débora Aguiar, 27, vive essa realidade. Moradora do Ibura, na periferia de Recife, em Pernambuco, ela vive a insegurança alimentar desde o início da pandemia. Mãe de duas meninas, é casada com Renato Isaías, 24, com quem divide as contas.
Sem a possibilidade de comprar, também começou a plantar. Mas as refeições se baseiam no que há de mais barato. “A gente tem vivido um processo de substituição. A mortadela e a linguiça viraram a carne”, afirma.
A pesquisadora Ana Segall conta que a estratégia das famílias para lidar com a falta de políticas públicas nem sempre coloca a alimentação em primeiro lugar. Ela resgata outro estudo que mostra que a ordem de prioridade incluía o pagamento do aluguel, o transporte para o trabalho, as contas e, só então, a comida. “Para lidar com isso, surgem estratégias socialmente não aceitáveis, como pegar alimento no lixo, ou aceitáveis, como fazer dívidas”, conta.
A prioridade para Maria de Lourdes Laurindo, 54, agricultora assentada pela reforma agrária no assentamento 25 de julho, em Casserengue, na Paraíba, é o alimento.
Mas a pandemia tirou a possibilidade dos agricultores locais venderem seu plantio na Feira da Agroecologia, sua única fonte de renda. Por plantar, ter galinheiro e uma cabra leiteira, Lourdes e seu marido vivem uma insegurança alimentar leve.
Água
A fome alcançou 12% dos domicílios rurais, contra 8,5% na área urbana. Lourdes vive em uma região semi-árida e com pouca disponibilidade de água, dependendo de cisternas. No campo, os domicílios atingidos pela fome dobram de 21,1% para 44,2% quando não há disponibilidade adequada de água para a produção de alimentos.
A pesquisa mostra o aumento da fome no Brasil aos níveis observados em 2004, na Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), quando a insegurança alimentar moderada estava em 12% e a grave em 9,5%. Na pesquisa atual, os dados mostram o primeiro quesito em 11,5%, e o segundo em 9%.
É o pior índice desde então. Em 2004, o país tinha 64,8% da população em segurança alimentar, hoje tem 44,8%. Até 2013, pesquisas mostravam regressão da fome no país. A Pesquisa de Orçamentos Familiares 2017-2018 do IBGE, no entanto, evidenciou o aumento da insegurança alimentar. Hoje, é ainda maior.