Conceito é usado para medir o impacto de doenças em uma população ao longo do ano, o surgimento de outras e a eficácia do sistema de saúde em socorrer esses doentes.
Por Laís Modelli, G1
O Brasil teve mais de 275,5 mil mortes por causas naturais a mais que o esperado para o país em 2020, segundo dados divulgados nesta segunda-feira (29) pelo Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), um excesso de 22%.
O número de “mortes superior ao esperado” é chamado de excesso de mortalidade. O conceito trabalha apenas com mortes causadas por doenças (causas naturais), como a Covid-19, e não considera os óbitos ocorridos por acidentes ou armas de fogo, por exemplo.
Abaixo, entenda os conceitos utilizados pelos epidemiologistas:
- Excesso de mortalidade: mede o impacto da evolução de doenças em uma população e a eficácia do sistema de saúde do país em socorrer esses doentes.
- Cálculo do excesso: é feita a subtração entre os óbitos por causas naturais registrados (ou esperadas) entre o ano analisado e a série histórica anterior.
- Mortes por causas naturais: são aquelas provocadas por qualquer doença, desde um infarto, câncer a Covid-19. Não entram, por exemplo mortes por acidentes, violência doméstica ou armas de fogo.
- Porque o aumento repentino? Foi causado tanto pelo impacto direto da nova doença como pelo indireto, por falta de assistência médica por superlotação de hospitais ou pela demora em buscar o médico.
- Prós e contras do uso do conceito na pandemia: Ponto positivo é que não depende de diagnóstico para a Covid e considera outras doenças, o ponto negativo é que o Sistema de informações sobre Mortalidade (SIM) tem atraso de até 6 meses nos dados.
Veja abaixo a análise dos principais pontos:
Excesso de mortalidade
O cientista de dados Isaac Schrarstzhaupt, coordenador da Rede Análise Covid-19, explica que o excesso de mortalidade representa mortes que não eram esperadas em um determinado período.
“Olhando para a quantidade de mortes por causas naturais ocorridas em anos anteriores, sabemos que uma quantidade x de mortes deverá acontecer no ano seguinte. Quando morre mais pessoas que o esperado, como em uma pandemia, chamamos essa discrepância de excesso de mortalidade”, diz Schrarstzhaupt.
O conceito serve como um indicativo para medir o impacto da evolução de doenças em uma população ao longo do ano, o surgimento de outras e a eficácia do sistema de saúde do país em socorrer esses doentes.
“Olhando os excessos de ano a ano, entendemos se estamos conseguindo combater epidemias e se o sistema de saúde está funcionando bem”, afirma o cientista.
O infectologista Julio Croda explica que, com base em anos anteriores, é esperado uma pequena flutuação no número de mortes entre um ano e outro. “Mas essa variação [excesso] não costuma ser superior a 3% de um ano a outro”.
“É um aumento absurdo”, diz Croda sobre o excesso de mortalidade de 22% em 2020, divulgado pelo Conass.
Como é calculado
O excesso de mortalidade é calculado ano a ano por meio da diferença (subtração) entre os óbitos por causas naturais registrados entre o ano analisado e a série histórica anterior. Ou seja, é uma diferença (subtração) entre as mortes esperadas e as registradas.
Os óbitos esperados para 2020 pelo Conass, por exemplo, foram calculados com base nos dados do Sistema de informações sobre Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde, ocorridos entre 2015 e 2019. Já para se saber o excesso de mortes, da média de óbitos registrado na série histórica foi subtraído os óbitos registrados em 2020 (retirados da Central de Informações do Registro Civil).
Por causa da sazonalidade de algumas doenças ao longo do ano, o excesso de mortes costuma ser calculado anualmente.
“Por ano, fica mais fácil ver a curva sazonal de algumas doenças. As síndromes agudas respiratórias, por exemplo, aumentam toda semana 7 de cada ano e, a partir da semana 20, começam a cair. A Covid-19, por exemplo, conseguiu afetar essa curva sazonal de modo que não era esperado”, diz Schrarstzhaupt.
Apenas mortes por causas naturais
O excesso de mortalidade considera apenas as mortes por causas naturais, que são aquelas causadas por qualquer doença, desde um infarto, câncer a uma Covid-19. Logo, nesse critério, não entram aquelas por acidentes, violência doméstica ou armas de fogo, por exemplo.
Para entender o conceito de causas naturais, Schrarstzhaupt cita como exemplo anos em que o Brasil conseguiu eliminar doenças mortais, como rubéola e varíola, por exemplo, em que o excesso de mortalidade não ocorreu ou foi muito baixo.
“Por outro lado, se você olhar para março de 2020, verá que foram registrados 108 mil óbitos por causas naturais no país [Conass]. Era o início da pandemia. Se olhar para março de 2021, os registros aumentam para 148 mil óbitos. Não se morre 40 mil pessoas a mais em um único mês por causas naturais em anos sem pandemia. Isso é o excesso causado direta e indiretamente pela Covid”, explica Schrarstzhaupt.
Aumento repentino das mortes
O excesso de mortes de causas naturais, segundo Schrarstzhaupt, aponta para três fatores: problemas no sistema de saúde do país e mudanças no curso normal das doenças dessa população; surgimento de novas doenças e epidemias; capacidade de resposta do sistema de saúde.
“Em anos que não temos saltos no excesso de mortes, a variação na mortalidade sobe de maneira muito coordenada com o aumento da população, em um ritmo natural”, explica o cientista de dados.
“Já quando temos uma doença nova, como a Covid-19, o aumento repentino das mortes é causado tanto pelo impacto dessa doença sobre as pessoas, como pelo impacto em outras doenças. Pessoas que jamais morreriam por apendicite, por exemplo, podem começar a morrer por falta de assistência médica”, diz.
Por isso, o documento divulgado pelo Conass para o excesso de mortalidade de 22% observado em 2020 no Brasil lista algumas causas que vão além da mortalidade pela própria Covid-19, como:
- Aumento no número de mortes causadas, de forma indireta, pela pandemia, como superlotação de hospitais e unidades de saúde;
- Restrições de movimentação da população imposta para conter a transmissão do vírus;
- Medo da população em procurar ajuda médica e se expor ao coronavírus;
- Vítimas de mal-estar súbito deixam de procurar atendimento hospitalar pelo risco de ser infectado pelo coronavírus;
- Entre os que procuram atendimento médico, podem não conseguir a ajuda necessária por causa da falta de leitos, profissionais da saúde e remédios.
Prós e contras do conceito na análise da pandemia
O médico Julio Croda afirma que o conceito é um dos melhores recursos no Brasil, país que ainda testa pouco os casos suspeitos de coronavírus, para analisar a evolução pandemia.
“O excesso de mortes é um dos melhores indicadores de controle da pandemia no Brasil porque não depende de diagnóstico para a Covid e envolve outras doenças que não são apenas a infecção. Isso mostra o impacto da pandemia em todo o sistema de saúde”, afirma.
“Nosso excesso de óbitos [22%, segundo Conass] traduz o quanto o sistema de saúde entrou em colapso para atender casos de Covid e de qualquer outra doença”, diz Croda.
Por outro lado, o infectologista aponta que o Sistema de informações sobre Mortalidade (SIM), usado para calcular o excesso de mortalidade, não é atualizado em tempo real.
“O SIM é demorado, tem um atraso de 3 a 6 meses. Os dados do Conass divulgados hoje não refletem a situação atual no Sul, por exemplo. O Rio Grande do Sul, que vive o seu pior momento da pandemia, tem um excesso de apenas 3%”, analisa Croda, sugerindo que o excesso de mortes no período apontado pelo Conass pode ser, na realidade, maior que 22%.