‘Dinheiro não compra felicidade, mas…’ brasileiros deixam país em crise em busca de trabalho e qualidade de vida

O g1 conversou com brasileiros que deixaram a vida e empregos para trás para morar no exterior. Dados da Receita Federal mostram que a emigração voltou a ganhar força após dois anos de pandemia.

Por Aline Macedo e Daniel Silveira, g1 — São Paulo e Rio de Janeiro

Nos Estados Unidos, Inaê diz ter comprovado que “dinheiro não compra felicidade” – mas permite ajudar sua família que, “de tão pobre, passa dificuldades”.

A estudante faz parte de um contingente de brasileiros que tem deixado um Brasil em crise em busca de trabalho e de uma melhor qualidade de vida no exterior.

Dados da Receita Federal indicam que voltou a crescer este ano o fluxo migratório do Brasil para o exterior, depois de dois anos de pandemia, que viram um recuo significativo nesses números. Entre 1º de janeiro e 12 de julho deste ano, cerca de 14 mil brasileiros enviaram ao órgão a Declaração de Saída Definitiva do País (DSDP) – quase 90% do total registrado ao longo de todo o ano passado.

Muitos, como Inaê, Júnior e Lívia, ouvidos pela reportagem do g1, encontraram lá fora trabalhos de menor qualificação, mas que garantem um nível de consumo e qualidade de vida acima do que tinham no Brasil. E com um bônus: mais segurança.

‘Posso comprar o que quero comer’

Júnior Marques com a esposa — Foto: Foto: Arquivo pessoal

Júnior Marques com a esposa — Foto: Foto: Arquivo pessoal

“No Brasil eu ia ao mercado e comprava o que dava para comprar. Hoje, posso comprar o que quero comer”, diz Júnior Marques, de 31 anos, que atualmente mora em Portugal.

Enquanto no Brasil o desemprego anda por volta dos 10%, em Portugal, diz Júnior, “não falta emprego para quem quer trabalhar”.

Mesmo com um emprego fixo, parceria em uma empresa de valet, carro quitado e uma casa própria em Niterói, Rio de Janeiro — Marques decidiu deixar o Brasil em busca de novas oportunidades em Portugal.

No país desde fevereiro, ele atualmente mora sozinho em um pequeno quarto alugado e atua na área de construção civil – algo que segundo ele, nunca imaginou, já que trabalhava como motorista de aplicativo no Brasil. Hoje, trabalha 8 horas por dia e ganha o que equivalente a cerca de R$ 5 mil por mês.

“Hoje trabalho menos e ganho mais, daqui a pouco vou poder comprar meu próprio apartamento, o que eu levaria anos no Brasil”.

Gabriela Marques, de 28 anos, sua esposa, já havia saído do Brasil meses antes, para trabalhar como camareira durante sete meses em um navio pela Europa – e eles agora se veem quando a embarcação faz paradas em cidades próximas.

Mas as oportunidades por lá não vieram sem percalços. O brasileiro, que relata nunca ter sofrido racismo por aqui, já se viu vítima na terrinha, onde, segundo ele, esse tipo de discriminação é comum.

“Um homem português que estava no celular levantou assim que cheguei e ficou me olhando com cara de nojo. Eu estava limpo, não estava fedendo, não tinha por que ele me olhar daquela forma”.

Segundo relatório da Comissão para a Igualdade e contra a Discriminação Racial (CICDR), a expressão que mais se destaca enquanto fundamento na origem da discriminação naquele país é a “nacionalidade Brasileira”, seguida pela expressão “cor da pele negra/preto(a)/negro(a)/raça negra”, categoria que inclui todas as referências a “negro(a)”.

‘Embarcamos com 8 malas, com roupas e alguns brinquedos’

“A gente queria ter uma vivência diferente, uma experiência de morar no exterior, e de conhecer a qualidade de vida em um país de primeiro mundo”, contou Luiz Ricardo Gerbelli, que se mudou com a família para o Canadá.

Luiz, Carol e os dois filhos tiveram muita dificuldade para enfrentar o primeiro inverno canadense da família; — Foto: Arquivo Pessoal

Luiz, Carol e os dois filhos tiveram muita dificuldade para enfrentar o primeiro inverno canadense da família; — Foto: Arquivo Pessoal

Foi a pandemia que adiou, em mais de um ano, o plano do casal Luiz Ricardo e Carolina, ambos de 40 anos, a de se mudar com os filhos para o país mais ao norte do continente. A mudança foi concretizada em agosto de 2021 e a família vive, desde então, em London, uma pequena cidade na província de Ontário.

Para concretizar o sonho, Luiz pediu demissão do emprego, e o casal vendeu quase tudo o que tinha.

“Nós 4 embarcamos com 8 malas, com roupas e alguns brinquedos, e só. Precisamos deixar coleções, manias, livros, muitas roupas, itens da casa e colocar na mala o que iríamos usar mesmo. No final, percebemos que não precisamos nem da metade que trouxemos. É um grande exercício de desapego e na prática a gente vê que dá certo”, disse Carolina.

No Brasil, Carol trabalhava como florista e tinha empresa própria. Ela se mudou com visto de estudante e um mês depois ingressou em um curso de horticultura. Já Luiz conseguiu trabalho no segmento de TI, mesma área em que atuava no Brasil. “Não foi fácil [conseguir trabalho na mesma área], mas deu certo”, comemora.

Luiz, no entanto, precisou ‘dar um passo atrás’ na carreira, inclusive em termos de remuneração, que acabou ficando abaixo do que ele recebia no Brasil. “Se no Brasil você era gerente, aqui você vai ser programador. O canadense precisa ganhar confiança em você primeiro antes de lhe oferecer um cargo maior”, esclareceu Luiz.

Houve desafios na adaptação das crianças, que não falavam inglês, e para lidar com o clima – no inverno canadense a temperatura pode chegar a -30ºC.

Mas, da qualidade de vida em um país de 1º mundo, o casal destaca a segurança. “Meu filho ficava desesperado porque a porta só tem uma tranca. Ele ficou alguns meses com medo de que alguém fosse entrar na casa. A gente não se dava conta que a violência no Brasil afetasse tanto uma criança como vinha afetando nossos filhos”, contou Carol.

‘Dinheiro não compra felicidade, mas…”

A estudante de jornalismo Inaê França de Araújo, de 23 anos, chegou em Orlando, nos Estados Unidos, no final de 2021, para um programa de intercâmbio com duração de três meses. Vencido este prazo, decidiu ficar motivada pela remuneração do trabalho.

“Para quem passou por tanto aperto na vida, estar aqui é uma oportunidade de alçar outros voos”, disse.

Inaê cresceu no subúrbio de Recife, capital pernambucana, em uma área muito pobre. Considera ter contrariado as estatísticas locais – os amigos de infância “ou foram presos, ou o máximo que sonham alcançar é trabalhar no mercado da esquina”, conta.

“Minha mãe recebia menos de um salário mínimo, mas conseguia pagar todas as contas e ainda economizava uns trocados. Se eu pedia a ela um creme de avelã, ela planejava a compra por três meses, mas eu ganhava o meu creme de avelã”.

Depois de uma temporada em São Paulo, onde estudou jornalismo enquanto morava em um hostel e dava aulas particulares de inglês, Inaê voltou a Recife para estagiar em um banco privado. Com a rescisão do trabalho de São Paulo, contratou o programa de intercâmbio que previa, além do estudo do idioma inglês, trabalho remunerado.

“Eu decidi ficar [depois de concluído os três meses de intercâmbio] porque com o salário mínimo no Brasil a hora de trabalho vale R$ 6, enquanto aqui (em Orlando) vale US$ 15”, disse.

Enquanto isso, em São Paulo, apesar de avaliar que teve “uma vida boa”, a jovem teve, por um ano, um único par de sapatos furados e uma única roupa de frio, que lhe foram doados.

Atualmente, Inaê trabalha como recepcionista em um hotel. E o creme de avelã, que na infância a mãe de Inaê precisava economizar ao longo de três meses para comprar, a jovem agora pode adquirir com tranquilidade.

“Aqui, o pote de 1kg custa US$ 3, então com apenas uma hora de trabalho aqui eu posso comprar 5kg de creme de avelã”, conta.

O salário nos Estados Unidos também lhe permitiu outros ‘luxos’, como comprar um smartphone que no Brasil é vendido na faixa de R$ 10 mil; e boas ações, como enviar dinheiro para que a avó pudesse recuperar a casa destelhada durante um temporal.

“Dinheiro não compra felicidade, mas te permite ajudar sua família que, de tão pobre, passa dificuldades. Eu acho que dinheiro não compra felicidade, mas sei que paga experiências incríveis”, apontou Inaê.

“Para minha nova vida, eu perdi a visão do meu pai emocionado com a minha graduação, perdi o crescimento da minha irmã mais nova, eu deixei de estar com meu cachorro em sua morte, deixei de abraçar minha melhor amiga quando ela foi humilhada pela mãe por ter uma namorada, perdi o abraço caloroso da minha mãe nos meus ataques depressivos”, enumerou.

Mas as perdas foram compensadas por grandes conquistas. “Eu ganhei uma qualidade de vida ótima, que eu mereço depois de tanto sufoco, eu ganhei oportunidades de proporcionar coisas grandes pra minha família, eu ganhei mais uma aventura e eu acho que isso é que faz a vida valer a pena”.

‘Tudo é muito caro, mas você tem poder de compra’

“Fiquei remarcando o voo várias vezes. Demorou dois anos até eu conseguir vir”, conta a cake designer Lívia Sampaio Santos, de 23 anos.

Lívia deixou o emprego como cake designer em São Paulo para estudar inglês na Irlanda — Foto: Arquivo Pessoal

Lívia deixou o emprego como cake designer em São Paulo para estudar inglês na Irlanda — Foto: Arquivo Pessoal

Lívia sairia em um voo rumo a Irlanda no dia 1º de abril de 2020 – mas só conseguiu embarcar dois anos depois, tempo que permitiu que ela aumentasse sua reserva financeira. Foi providencial: afinal, Dublin, cidade que escolheu para estudar inglês é uma das cidades europeias com maior custo de vida.

“Meu sonho sempre foi esse, aprender inglês para conseguir ganhar mais dinheiro, ter mais coisas e ajudar minha família”, destacou.

Mesmo sem domínio do idioma, Lívia rapidamente conseguiu trabalho. Foi chamada para trabalhar na empresa de um brasileiro como ‘cleaner’, termo inglês usado para designar pessoas que fazem serviços de limpeza. Diferente do Brasil, remunera-se bem quem faz faxina na Europa.

“Em Dublin tudo é muito caro, mas você tem poder de compra. É diferente, porque aqui você ganhar em euro”, destacou.

Das primeiras impressões sobre a Irlanda, Lívia destacou ter sido impactada pelo choque cultural. “A formalidade do irlandês impressiona. Fui ao aniversário de uma criança de 10 anos e achei surpreendente como até as crianças agem muito formalmente”, disse.

Quando perguntada sobre o que deixou para trás ao sair do Brasil, Lívia falou do emprego como cake designer. “Tinha um mês só que eu havia chegado aqui e me peguei sentindo muita saudade do meu trabalho. Eu amo o que faço”, disse.

Para onde vão os brasileiros?

De 2011 a 2018, cresceu ano a ano o número de pessoas que declararam à Receita a saída definitiva do país – até bater recorde, em 2018, quando foram 23,8 mil, quase três vezes o número de 2011. Depois de um 2019 de estabilidade, esse número despencou durante a pandemia, quando a movimentação entre os países ficou restrita.

O Ministério das Relações Exteriores diz não ter um balanço atualizado do número de brasileiros vivendo em outros países. Os dados mais recentes disponibilizados pela pasta são de 2020, quando a comunidade brasileira no exterior era estimada em 4,2 milhões – maior contingente registrado, pelo menos, desde 2009.

Os dados do Itamaraty mostram, também, que quase metade (46%) dos emigrantes brasileiros estão na América do Norte. Outros 30% estão espalhados pela Europa. As menores proporções da comunidade brasileira no exterior estão no Oriente Médio (1,33%) e na África (0,23%).

Ainda segundo o levantamento do Itamaraty, Estados Unidos lidera o ranking dos dez países que mais concentram emigrantes do Brasil. A Europa tem seis países nessa lista, que tem o Paraguai como único representante da América do Sul.