‘Chegava a chorar’, ‘só traz perda’: vício em ‘bets’ causa danos financeiros e psicológicos a pessoas de baixa renda

Auxiliar de limpeza conta que chegou a perder R$ 800 de uma vez e, mesmo no prejuízo, não conseguia parar. Psicólogo vê epidemia de saúde mental em busca desenfreada por apostas online no Brasil.

Por Murilo Badessa, EPTV

A Comunidade da Locomotiva é uma das maiores ocupações de Ribeirão Preto (SP), com mais de 3 mil pessoas, entre elas o ajudante geral Jodson Vieira de Oliveira, de 25 anos, que até pouco tempo atrás travava uma batalha mental contra os jogos de azar pela internet. Mesmo sabendo dos riscos e com o orçamento mensal apertado, ele já chegou a apostar R$ 300 em uma dessas plataformas e ficou no prejuízo.

“Isso não é futuro pra ninguém, você só traz perda e desavença na família. Não é bom pra ninguém não. Pare enquanto é tempo”, aconselha.

Especialista alerta para riscos psicológicos de jogos de apostas online — Foto: Reprodução/EPTV

Especialista alerta para riscos psicológicos de jogos de apostas online — Foto: Reprodução/EPTV

O vício, que hoje Jodson diz ter superado, é um problema já classificado como uma epidemia de saúde mental por especialistas e movimenta um mercado bilionário no Brasil. Segundo dados divulgados esta semana pelo Banco Central, as chamadas “bets”, casas de apostas online, movimentaram R$ 160 bilhões em oito meses deste ano e atraíram mais de 24 milhões de pessoas em todo o paísentre elas pessoas de baixa renda.

Para se ter uma ideia, somente em agosto deste ano, R$ 3 bilhões foram movimentados por cinco milhões de beneficiários do Bolsa Família, de acordo com o Bacen, com um gasto mensal de R$ 147 por pessoa. Os valores podem ser ainda maiores, porque o levantamento oficial apenas considera movimentações feitas por pix.

Para o psicólogo Felipe Gomez, a procura por essas plataformas online, quando sai do controle, se trata de um transtorno mental que prejudica não só o patrimônio e as finanças como também as relações pessoais.

“É uma compulsão que acaba se instalando que a pessoa, mesmo sabendo dos prejuízos, não consegue evitar”, diz.

A auxiliar de limpeza Ana Claudia Aparecida de Oliveira de Souza, de Ribeirão Preto, conta que chegou a ser viciada em apostas online — Foto: Reprodução/EPTV

A auxiliar de limpeza Ana Claudia Aparecida de Oliveira de Souza, de Ribeirão Preto, conta que chegou a ser viciada em apostas online — Foto: Reprodução/EPTV

‘Eu chegava a chorar’, diz auxiliar de limpeza

Foi esse descontrole que fez a auxiliar de limpeza Ana Claudia Aparecida de Oliveira de Souza apostar, de uma vez, R$ 800 em uma casa de apostas, perdeu tudo e, mesmo no prejuízo, ainda continuou a jogar outras vezes.

“Só de eu escutar alguém jogando, de eu escutar o barulho do joguinho, pra mim eu tinha (…), eu chegava a chorar, já cheguei até a chorar pra poder jogar”, conta.

Ela conta que, quando começou a jogar com esses aplicativos, chegou a ganhar algumas apostas, mas o pouco que acumulou logo se tornou uma sequência de perdas e um rombo no orçamento de casa. “Eu ficava muito nervosa porque, se eu não tivesse dinheiro eu ficava nervosa, eu ficava nervosa e eu chegava a pegar dinheiro até emprestado pra poder estar jogando.”

Os transtornos também chegaram ao casamento, nas discussões com o marido por causa dos jogos, e na rotina diária, muitas vezes deixada de lado.

“Se quando o meu marido estava jogando, se ele não me desse [dinheiro], eu acaba discutindo com ele, porque eu queria jogar. Então muitas das vezes também deixei de fazer muitas coisas dentro de casa porque queria estar jogando, eu não vou mentir porque eu não posso mentir. Cheguei a ser bem viciada mesmo”, relata.

O ajudante geral Jodson Vieira de Oliveira, de Ribeirão Preto, conta que já foi viciado em jogos online e teve muitos prejuízos — Foto: Reprodução/EPTV

O ajudante geral Jodson Vieira de Oliveira, de Ribeirão Preto, conta que já foi viciado em jogos online e teve muitos prejuízos — Foto: Reprodução/EPTV

‘É praticamente uma epidemia’, diz psicólogo

Para o psicólogo Felipe Gomez, o vício por jogos em casas de apostas online tem uma compulsão que, assim como na dependência química, vai progressivamente tomando conta da pessoa.

“Acontece também de uma forma que se escala, ela vai progressivamente e as consequências desse comportamento vão levando a pessoa justamente a ter problemas nos seus outros ambientes, nos seus relacionamentos, em situações de sua vida a ter perdas significativas. E mesmo tendo essas perdas elas não conseguem frear a compulsão por aquele vicio de um jogo patológico”, explica.

Governo quer colocar travas para apostadores compulsivos em bets e jogos

Um problema que, segundo a rotina em seu consultório, tem aumentado de maneira preocupante. “Essa é nossa preocupação enquanto profissional de saúde, porque nós vemos um aumento significativo e isso é praticamente uma epidemia que está acontecendo.”

Para o especialista, a facilidade de acesso a essas plataformas, proporcionada pelos aplicativos móveis e internet, é um dos fatores que ajudam a explicar o agravamento desse vício.

“Se antes o sujeito tinha que sair do país para ir a um cassino ou ir a um bingo ou buscar esse tipo de jogos de apostas, porque estamos falando de jogos de azar, jogos de apostas, e na facilidade da modernidade, a pessoa tem hoje o acesso muito rápido pelo seu próprio celular, pelo aplicativo, é fácil de ela usar”, diz.

Da mesma maneira, a publicidade feita por influenciadores digitais contribui para atrair essas pessoas e aciona gatilhos mentais que estimulam essa compulsão por jogos, segundo ele.

“É viciante, na verdade. Você usa seu celular, toda hora você abre aparece uma plataforma, aparece outra, hoje em dia a internet induz a gente a fazer muito isso, a tecnologia hoje na verdade incentiva muito a pessoa a fazer isso aí. Você abre um anúncio, um aplicativo, toda hora passando anúncio disso”, relata o ajudante geral Jodson.

Se, no ponto de vista pessoal, as pessoas precisam de uma intervenção de saúde mental e até de internações, no âmbito coletivo Gomez defende uma maior atuação das autoridades brasileiras para controlar o acesso a esses jogos no país.

“Seria fundamental uma regulamentação e uma proibição justamente pra preservar a saúde mental dos indivíduos”, afirma o psicólogo.