Manuscrito de 1.600 anos em grego é versão mais antiga do ‘Evangelho de Pseudo-Tomé’. Texto apócrifo trata supostamente da infância de Cristo: uma criança bem diferente da imagem de bondade e amor.
Por Elizabeth Grenier
G1
Obra de 1854 ou 1855, de William Holman Hunt, traz Jesus criança. — Foto: Domínio público
“Nova descoberta pode dar pistas sobre a infância de Jesus”
“Texto secreto da Bíblia muda tudo”
“Fragmento de papiro egípcio cadastrado errado em biblioteca alemã detona percepções milenares sobre a Bíblia e o próprio Jesus”
Essas são algumas das manchetes em torno da descoberta recente de um manuscrito de 1.600 anos, contendo uma narrativa sobre a infância de Jesus Cristo. No entanto, Lajos Berkes e Gabriel Nocchi Macedo, os dois papirologistas responsáveis pelo achado, ficaram um pouco atônitos com esse tipo de noticiário.
“Não é uma história nova, não é uma história autêntica sobre Jesus”, explica Berkes, docente do Instituto de Cristandade e Antiguidade da Universidade Humboldt, de Berlim. “Então, não muda nada no que sabemos sobre os Evangelhos e sobre ele. Causou muito mal-entendido e polêmica, embora nós nunca tenhamos alegado nada.”
Papiro antigo sobre a infância de Jesus
Ainda assim, o que ambos encontraram é espetacular: trata-se do mais antigo manuscrito do assim chamado “Evangelho da Infância”, ou “de Pseudo-Tomé”. Trata-se de um texto apócrifo, ou seja, rejeitado pela Igreja e nunca incluído no Novo Testamento.
Entre os fragmentos, está a narrativa de como, aos cinco anos, Jesus está jogando perto de um riacho, onde encontra argila, com que faz figuras de pássaros. O pai, José, o repreende por estar ativo no Sabá, o dia de descanso para os judeus. Em resposta, o menino bate as mãos, as aves ganham vida e saem voando.
Fragmento de papiro do século 4 ou 5 — Foto: Reprodução/Staats- und Universitätsbibliothek Hamburg/Public Domain
Linguagem mais elevada do que se pensava
Apesar de não incluído entre os evangelhos canônicos, o “da Infância” é bem conhecido pelos estudiosos. Calcula-se que a transcrição original data de meados a fim do século 2º, com base em outro documento do mesmo século, que cita o bispo grego Irineu de Lyon, segundo o qual o evangelho é inautêntico e herético.
De fato, ele contém histórias que surpreendem quem conhece Cristo como figura bondosa e amorosa. O jovem Jesus tende a ter explosões de raiva e vingança, xinga outras crianças que o aborrecem, pune-as com invalidez ou morte, provoca cegueira nos vizinhos, mata um professor que o censurou.
Há muito, especialistas debatem por que o líder religioso deveria ser retratado como “herói de travessuras ridículas e banais”, nas palavras de um certo autor.
Uma vez que o próprio Novo Testamento fornece pouca informação sobre a infância de Jesus, o “Evangelho de Pseudo-Tomé” tornou-se muito popular na Alta Idade Média, e há versões antigas em grego, latim, siríaco, eslavo, georgiano, etíope e árabe.
“Parte-se do princípio que o idioma original é grego, e até agora o manuscrito mais antigo era do século 11”, explica Berkes.
Datado entre os séculos 4º e 5º, o fragmento encontrado por ele e Macedo ilustra como certas palavras foram substituídas na transcrição, ao longo dos anos. Os dois pesquisadores agora planejam uma revisão completa do manuscrito existente e estão preparando numa nova tradução.
Embora não vá alterar significativamente o conteúdo em si, seu trabalho permite uma nova compreensão da linguagem empregada, “basicamente mostrando que o registro e valor estilístico do texto grego original era muito mais elevado do que se pensava”.
‘Papiro da Mulher de Jesus’: uma fraude surreal
Tentar entender a vida de Cristo para além dos textos canônicos segue sendo um tópico fascinante. Achados que revelam mais sobre a figura central da Cristandade constituem sempre uma sensação, sendo amplamente divulgados.
Um caso especialmente famoso data de 2012, quando a professora da Universidade de Harvard Karen L. King apresentou um fragmento de papiro em que Jesus se referiria a sua “mulher”.
O escrito se encaixava numa longa história de teologia cristã alternativa, sustentando que Jesus seria casado com Maria Madalena, a qual, de acordo com os evangelhos canônicos, era uma se suas seguidoras próximas. A ideia ganhou mais notoriedade através do bestseller de Dan Brown, O Código Da Vinci, de 2003, porém carece de qualquer base histórica.
E o papiro que estampou manchetes em 2012 acabou se revelando uma fraude, graças a investigações do jornalista Ariel Sabar, primeiro publicadas em 2016 na revista The Atlantic, e depois no livro Veritas: A Harvard professor, a con man and the Gospel of Jesus’s Wife (Um professor de Harvard, um vigarista e o Evangelho da Mulher de Jesus), de 2020.
A história ganha um toque ainda mais surreal porque o homem que se crê ter forjado o papiro é o alemão Walter Fritz, que abandonou os estudos de egiptologia em Berlim e se envolveu em diversas peripécias na Flórida, inclusive como negociante de peças de automóveis e de arte, e como pornógrafo da internet.
Questão de “persistência e sorte”
Segundo Lajos Berkes, “era uma falsificação bastante elaborada, mas muitos especialistas em manuscritos viram desde o início que era suspeita”.
Por outro lado, ele e Macedo podem estar seguros de que seu achado é autêntico: o fragmento consta da estabelecida e conceituada coleção da Biblioteca Estatal e Universitária Carl von Ossietzky, de Hamburgo, que data do início do século 20.
Essa coleção foi adquirida através do Cartel de Papiros Alemão, encarregado de comprar manuscritos do Egito para museus e bibliotecas da Alemanha. Na época, os pesquisadores se concentravam em estudar os documentos mais bem preservados, enquanto peças menores costumavam ficar de lado, sem ser devidamente cadastradas.
Só no século 21 começou um processo mais sistemático de catalogação desses fragmentos. Das mais de mil peças da coleção de Hamburgo, cerca de um terço foi catalogada e está disponível em forma digital. E assim os dois pesquisadores encontraram o atual manuscrito.
Vasculhando o banco de dados online, eles identificaram a palavra “Jesus”. Com a ajuda de um outro banco, que coleta toda a literatura grega antiga, puderam determinar que se tratava de uma parte do Evangelho da Infância de Jesus.
“Para ser sincero, era só um projeto paralelo, e acabou se revelando uma coisa grande para nós dois”, conta Berkes.
Ele lembra que há centenas de milhares de manuscritos por todo o mundo ainda aguardando serem examinados. “Não posso garantir, mas acredito que haja outros fragmentos semelhantes por aí. Se tiver sorte, vou encontrar alguma outra coisa. Mas tem a ver com persistência e sorte.”