Além de marcar uma quebra de paradigma para a franquia, a transformação da personagem indefesa em heroína acompanha um movimento amplo na indústria de games, que vem diminuindo a predominância de reproduções hiperssexualizadas de mulheres –símbolo desse meio nos anos 1990 e 2000– para colocá-las como protagonistas de suas próprias histórias.
Representação clássica do estereótipo da donzela em apuros nos games, a princesa Zelda protagonizará pela primeira vez sua própria aventura no jogo “The Legend of Zelda: Echoes of Wisdom”, anunciado pela Nintendo na última terça-feira (18).
Além de marcar uma quebra de paradigma para a franquia, a transformação da personagem indefesa em heroína acompanha um movimento amplo na indústria de games, que vem diminuindo a predominância de reproduções hiperssexualizadas de mulheres –símbolo desse meio nos anos 1990 e 2000– para colocá-las como protagonistas de suas próprias histórias.
No Summer Game Fest, evento realizado no início de junho em Los Angeles em que foram apresentados os próximos lançamentos da indústria de games, proliferaram títulos de grande orçamento protagonizados por heroínas de ação –algo que só era frequente entre desenvolvedores independentes, mais propensos a arriscar em suas produções.
Os dois principais lançamentos da gigante francesa Ubisoft, por exemplo, tem protagonistas femininas. Os jogadores de “Assassin’s Creed Shadows” controlarão a ninja Naoe no esperado capítulo inspirado no Japão feudal da série de jogos de RPG de ação.
Já “Star Wars Outlaws”, jogo de ação em mundo aberto que se passa entre os acontecimentos dos filmes “O Império Contra-Ataca” e “O Retorno de Jedi”, é protagonizado por Kay Vess, uma contrabandista que busca ascender no submundo da Orla Exterior.
“Queríamos contar uma história diferente, mostrar um caminho diferente para um personagem”, afirma Julian Gerighty, diretor criativo de “Star Wars Outlaws”, dizendo por que optou pela protagonista. “Ela é um pouco desajeitada, não tem tanta confiança, mas é determinada e capaz de consertar tudo até conseguir seu objetivo. É muito fácil de se identificar com ela.”
A Bandai Namco, conhecida por publicar os dificílimos jogos da série “Dark Souls” e “Elden Ring”, também adicionou uma mulher ao seu portfólio de protagonistas com Haroona, personagem principal de “Unknown 9: Awakening”, desenvolvido pelo seu estúdio canadense Reflector Entertainment.
A personagem, criada com base na feição e movimentos da atriz britânica Anya Chalotra –a Yennefer da série “The Witcher”, da Netflix–, é uma paranormal com poderes telecinéticos, capaz de possuir e controlar seus inimigos. Ao mesmo tempo em que tenta desvendar os segredos sobre seus dons, ela luta contra uma organização maligna que coloca em risco o futuro da humanidade.
A Microsoft também destacou games com protagonistas femininas em sua apresentação, uma das mais celebradas da última temporada de eventos de games. Foi o caso, por exemplo, de “Perfect Dark”, reboot da franquia de jogos de ação dos anos 2000 da espiã Joanna Dark, que ressurgiu após um longo período sem notícias sobre seu desenvolvimento.
Ao menos nessa impressão inicial, a heroína foi apresentada em uma nova versão, bem menos erotizada do que a que chegou a estampar a capa da revista masculina britânica FHM em 2005 para promover o lançamento do console Xbox 360.
Salvo raras exceções, os jogos lançados dos anos 1980 até os primeiros anos do século 21 costumavam encaixar as personagens femininas em dois perfis. Elas podiam ser “donzelas em apuros”, que precisavam ser salvas pelo protagonista, como Zelda e princesa Peach, ou personagens hipersexualizadas, com roupas reveladoras e corpos voluptuosos. Casos, por exemplo, de Tifa Lockhart, de “Final Fantasy 7”, e da maioria das lutadoras de “Mortal Kombat” e “Street Fighter”.
Quando representavam personagens secundárias, a exploração de personagens femininas costumava ser ainda mais explícita. Em “Duke Nuken 3D” (1996) o jogador combatia monstros em um planeta devastado, mas encontrava pelo caminho strippers que mostravam os seios caso recebessem uma gorjeta. Já “God of War” (o original, lançado em 2005) conta com um minigame sexual em que o jogador pode participar de um ménage com outras duas mulheres.
Um dos símbolos da era de hiperssexualização nos games tornou-se, depois, uma marca da mudança dessa cultura. Lara Croft, que era representada desde 1996 com um “corpão violão”, com cintura fina e peitos exageradamente grandes, passou por um “reboot” em 2013 e ganhou um visual com proporções mais fiéis à realidade e menos sexualizado.
“A Lara Croft é um caso clássico em que se abandonou aquele perfil extremamente sexualizado”, afirma Érika Caramello, CEO do estúdio Dyxel, cofundadora da Rede Progressista Games e professora universitária. “Não que ela ainda não seja bonita ou tenha lá seus atrativos. Querendo ou não, para ser vendável, ela ainda se baseia muito em estereótipos.”
Para Érika, o fenômeno atual é resultado tanto de mudanças culturais quanto econômicas.
Em meio a uma crise, com dezenas de estúdios fechados, projetos cancelados e milhares de demissões, a indústria de games “AAA” –como são chamadas as grandes produções– busca novos públicos para recuperar seu crescimento. E as mulheres, que já são uma parcela bastante importante dos jogadores em dispositivos mobile, aparecem como alvos prioritários.
“A gente aponta já há muitos anos, até mesmo aqui no Brasil, que mais mulheres consomem jogos do que homens. Obviamente, a indústria está atenta para esses novos nichos para ampliar sua base de consumidores”, afirma Érika.
No caso da Nintendo, que além do novo jogo da Zelda lançou em março “Princess Peach: Showtime!”, aventura protagonizada pela princesa Peach, a estratégia parece clara. Mesmo assim, Bill van Zyll, diretor sênior e gerente geral para a América Latina da Nintendo of America, afirma que os jogos da empresa são voltados para todos, ainda que admita um apelo especial às jogadoras.
“Não tenho certeza se esse [ampliar o público consumidor feminino] é necessariamente o principal ou único ponto. Nosso público vai de 5 a 95 anos e temos uma boa mistura, com uma representação alta de jogadoras mulheres. Certamente elas vão curtir esses jogos, mas, para deixar claro, são jogos desenvolvidos para todo mundo”, diz.
O cuidado na declaração do executivo tem seu motivo. Ainda que a indústria não tenha abandonado por completo sua tradição de heroínas sexy –jogos como “Stellar Blade” e a série “Bayonetta” são a prova disso–, essa mudança de padrão é alvo recorrente de patrulhas misóginas nas redes sociais, que veem essa tendência como uma submissão dos desenvolvedores ao politicamente correto.
Heroínas de ação como Aloy, da série “Horizon”, e Abby, de “The Last of Us Part 2”, por exemplo, são constantemente citadas como exemplos de personagens feias ou masculinas demais. A nova Joanna Dark também não escapou das críticas, ainda que a personagem tenha sido criada com base na imagem e movimentos da modelo internacional Elissa Bibaud.
Érika reconhece que apesar das mudanças pelas quais o cenário de games passa nos últimos anos, com uma maior participação das mulheres e pessoas LGBTQIA+, a cultura gamer ainda é predominantemente masculina e tóxica a esses novos públicos. Para ela, parte do problema está nas próprias desenvolvedoras, que não se posicionam de forma contundente para defender suas protagonistas.
“Se uma empresa tiver realmente como foco o público feminino e ela não está olhando para isso [a toxicidade das redes], aí ela tem um grande problema”, afirma.
Para ela, algumas empresas deixam de tomar providências em relação à toxicidade de suas comunidades por também lucrar com as polêmicas que se espalham nas redes sociais, criando exposição gratuita para seu jogo. “Quanto mais briga, mais o negócio fica efervescente e mais o algoritmo das redes sociais rende dinheiro para eles”.
A especialista aponta como solução a regulação das redes sociais. No entanto, enquanto isso não acontece, cabe à própria comunidade, e em especial às mulheres, cobrar desenvolvedoras e publicadoras de games para que façam uma gestão eficiente da comunidade de seus jogos e deem real importância para a diversidade, tanto nas personagens de seus games quanto internamente, colocando mulheres em postos de comando.
Ver Zelda como protagonista da sua própria aventura é um grande passo para as jogadoras, mas é só o começo para a conquista do espaço das mulheres no mundo dos games.