Milhares de agentes do poder público e voluntários fazem resgates e se esforçam 24 horas para socorrer as vítimas das enchentes no Rio Grande do Sul.
Enquanto isso, no entanto, outro exército se mobiliza nas redes sociais para criar e distribuir informações falsas sobre a tragédia.
Autoridades do Rio Grande do Sul informaram que ao menos 78 pessoas morreram devido às fortes chuvas que assolam o Estado desde a semana passada. Até às 18h de domingo (5/5), a Defesa Civil gaúcha contabilizava ao menos 105 pessoas desaparecidas. Cerca de 115 mil pessoas estavam desalojadas.
Segundo a Defesa Civil estadual, 341 dos 497 municípios gaúchos foram afetados pelas fortes chuvas que se estendem desde o início da semana. São 844 mil pessoas afetadas pelas enchentes.
Algumas das que mais se destacaram no último fim de semana foram as informações falsas de que o governo havia se mobilizado para multar os barqueiros que fazem o resgate das vítimas e a de que o governo federal teria patrocinado o show da Madonna no Rio de Janeiro.
Na noite de domingo, o governo do Rio Grande do Sul desmentiu a informação da multa e informou por meio de nota que “não há exigência de habilitação para condução desses equipamentos, conforme informações do governo do Estado, por meio do Gabinete de Crise”.
“O show da Madonna foi pago pelo Itaú e pela Heineken, com apoio da prefeitura do Rio e do governo do Estado”, disse.
“Nesse ecossistema, a desinformação zomba da vida alheia, tripudia sobre os mortos e não se constrange em produzir conteúdos falsos com o objetivo de conseguir cliques, engajamento e monetização por adesão a um posicionamento político”, diz.
Escóssia reforça que os riscos numa tragédia são grandes e que a desinformação os amplifica. Para ela, as notícias falsas desviam a atenção para problemas inexistentes.
“Elas (notícias falsas) têm um efeito muito perverso. Atrapalham o trabalho das autoridades no socorro das vítimas, pois têm que ficar desmentindo conteúdo falso. Isso prejudica o trabalho de quem tem que atuar nesse socorro e gera ondas de pânico”, diz.
Um balanço divulgado pelo governo do Rio Grande do Sul na tarde de domingo (5/5) informou que há seis barragens de hidrelétricas em situação de emergência, com risco iminente de rompimento. Segundo o governo gaúcho, isso aponta que devem ser tomadas “providências para preservar vidas”.
Entre essas medidas, está a retirada de famílias das áreas que podem ser atingidas caso ocorra um rompimento. Não foi informado o número de famílias que estão nessa situação.
‘Repolarização’
Fabricio Pontin, que é professor de Relações Internacionais da Universidade La Salle em Porto Alegre e na vizinha Canoas, está envolvido nas ações para arrecadar doações para os atingidos, ao mesmo tempo em que observa o discurso nas redes sobre a tragédia.
Analisar a dinâmica da criação e circulação da desinformação nas plataformas digitais é um dos seus objetos de pesquisa. Para Pontin, está acontecendo um fenômeno de “repolarização da narrativa sobre a catástrofe”.
“Em momentos como esses, a gente precisa de informação confiável. Uma informação falsa sobre uma ponte caindo, ou sobre assalto, ou arrastão pode custar vidas”, diz ele. Ao mesmo tempo, ele avalia, é justamente em momento de comoção como o atual que “é extremamente difícil, do ponto de vista cognitivo, sair da sua posição anterior, seja ela qual for”.
“As notícias falsas consolidam a posição que você já tem e a rede que você já tem”, como forma “de fortalecer suas redes de afeto”.
Muitas vezes são redes reais, como o grupo do condomínio ou do futebol, potencializadas pela rapidez e intensidade das trocas nas redes.
“Os eventos como o de agora causam uma desordem cognitiva muito grande. E reagir a isso tem um custo cognitivo, um custo pessoal, muito alto. A tendência de todos nós é voltar para um lugar cognitivo de segurança”, afirma.
“O pessoal que é contra governo está encontrando nessa crise as narrativas que consolidam a posição deles de ser contra governo, contra imposto, contra instituições. E, da mesma forma, você encontra uma [narrativa] anticapitalista [do outro lado]. Em todos os grupos sociais, parece estar havendo essa consolidação.”
Ele aponta para a criação de uma linguagem de familiaridade que aparece em narrativas de grupos específicos. “Pode ser uma linguagem de paranoia com o Estado, ou de paranoia com o setor privado. De paranoia com esse ‘outro’ imaginado, que é um adversário.”
Para ele, “associar isso [as fake news ou a criação de narrativas] apenas com a extrema direita é um reflexo errado”.
“Todos nós grudamos em aspectos de informação que são aspectos falsos, que têm elemento falso, [que] entram em assertivas que consolidam o nosso lugar de crença”, explica.
A questão, ele diz, é que na direita radical, essas redes são extremamente profissionais. “Tem muita gente ganhando muito dinheiro com tudo isso, então também não dá para ignorar que tem esse fator.”
Monetização da tragédia
Fernanda da Escóssia, que também é professora da faculdade de Comunicação Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), explica que influenciadores digitais ganham dinheiro com a divulgação de notícias falsas nas redes. O dinheiro, segundo ela, é pago por empresas a partir da monetização de conteúdo publicado em suas plataformas.
Ela chama esse movimento de “profissionalização das fake news”.
“Mais uma vez, o sistema da desinformação se articula para utilizar a dor da tragédia para obter engajamento, monetizar e fazer crítica política”, afirma.
Ela diz que todas as redes sociais podem ser monetizadas, sem apontar uma preferida daqueles que espalham fake news. Ela aponta que o site Aos Fatos acompanha com atenção a disseminação desse conteúdo falso e fará a checagem de alguns deles.
Para evitar que a desinformação seja ainda mais difundida, ela recomenda que as pessoas não compartilhem conteúdos que não tenham certeza se é verdadeiro.
Ela orienta que, para evitar o compartilhamento de conteúdo falso, a pessoa precisa desconfiar do que recebe. Ela recomenda avaliar se a origem da informação é de confiança, como um veículo de jornalismo reconhecido.
Depois, ela deve procurar a mesma informação em outras fontes para confirmá-la em outros sites ou páginas de confiança.
Ela alerta que o conteúdo falso é geralmente repassado com um senso de urgência, com pedidos para compartilhá-lo imediatamente com o maior número de pessoas possível. E ressalta que ainda há muita dificuldade para o leitor diferenciar o que é verdadeiro e falso.
“É difícil para ele porque é possível hoje fazer uma deep fake e usar o rosto de um famoso anunciando algo falso porque essas tecnologias estão cada vez mais sofisticadas”, diz.
E reforça que, na dúvida, é melhor não compartilhar.
“A intenção é você não se tornar um inocente útil e não disseminar o conteúdo de desinformação”.