- Da BBC News em Birmingham, Alabama (EUA)
Margaret Boyce é uma pessoa reservada, de fala mansa, e certamente não é — nas palavras dela — alguém que gosta de “choramingar”.
Ela estava tomando medicamentos para fertilidade havia 10 meses e estava prestes a fazer sua primeira consulta para fertilização in vitro (FIV), quando uma decisão da Suprema Corte do Alabama abalou sua vida.
Os juízes decidiram que embriões congelados são considerados crianças, causando imediatamente choque e confusão entre parte da população.
Os principais hospitais interromperam o fornecimento de tratamentos de fertilidade — e aspirantes a pais se sentiram desorientados em busca de informações sobre o que aconteceria em seguida.
O debate sobre os direitos reprodutivos nos EUA tem sido impulsionado, em parte, pela oposição ao aborto a partir de grupos cristãos — mas esta decisão dividiu esse movimento e acendeu a discussão sobre o papel da religião na legislação americana.
“Sou uma de três (irmãos). Acho que o maior presente é dar um irmão ao seu filho”, diz ela.
“A jornada para se tornar pais é diferente para cada casal – mental, emocional e financeiramente.”
“Esta decisão adicionou mais ansiedade desnecessária a algo que já é muito difícil”, acrescenta ela, emocionada.
Para uma cristã devota como Margaret, a decisão — dadas suas consequências para o que ela vê claramente como um processo de criação de vida — é ainda mais difícil de entender.
“Deus diz para você prosperar e se multiplicar”, pondera.
A fertilização in vitro é um tratamento difícil e demorado, que envolve a fecundação dos óvulos com espermatozóides em laboratório para criar um embrião microscópico.
O embrião é então transferido para o útero da mulher, onde pode gerar uma gravidez — mas um resultado positivo não é garantido.
Os embriões são frequentemente congelados ou destruídos como parte da fertilização in vitro, que representa cerca de 2% das gestações nos EUA.
O tribunal do Alabama decidiu que uma lei existente — de homicídio culposo de um menor — abrange não só os fetos no útero, mas também os embriões mantidos num laboratório ou instalação de armazenamento.
A decisão não restringiu, nem proibiu explicitamente a fertilização in vitro, mas gerou uma profunda incerteza para as clínicas e profissionais de saúde que lidam com embriões — e temem processos judiciais.
Nos últimos dias, o gabinete do procurador-geral do Estado afirmou que “não tinha intenção” de abrir processos contra clínicas de fertilização in vitro — mas uma clínica disse à BBC que esta declaração carecia de detalhes e não aplacou seus receios.
Embora a maioria dos juízes tenha baseado sua decisão na lei, o presidente do tribunal, Tom Parker, também tinha uma autoridade superior em mente — ele invocou repetidamente as escrituras sagradas cristãs para explicar sua decisão.
O povo do Alabama, escreveu ele em seu parecer favorável, havia adotado uma “visão da santidade da vida com base teológica” em sua Constituição estadual.
Explorando fontes religiosas de teólogos cristãos clássicos, como São Tomás de Aquino, e também um manifesto cristão conservador moderno, ele concluiu que “mesmo antes do nascimento, todos os seres humanos têm a imagem de Deus, e suas vidas não podem ser destruídas sem apagar sua glória”.
Alguns grupos antiaborto comemoraram o uso explícito das escrituras no parecer de Parker para justificar o que, para eles, foi uma decisão importante.
Tony Perkins, presidente do grupo ativista evangélico Family Research Council, descreveu como “uma bela defesa da vida”.
Mas a justificativa teocrática do presidente da Suprema Corte deixou Margaret intrigada. Ela não é favorável ao aborto, mas também tem dificuldade de ver um embrião congelado como uma pessoa viva. Para ela, a vida começa com um batimento cardíaco.
“Ninguém entende melhor que um embrião não é uma criança”, diz ela, antes de fazer uma pausa, “do que a pessoa que deseja que esse embrião seja uma criança”.
Os tribunais dos EUA às vezes tomam decisões que parecem se basear em premissas religiosas, de acordo com Meredith Render, professora da Faculdade de Direito da Universidade do Alabama.
Mas, ela acrescenta, “raramente você vê isso tão explicitamente declarado” como na opinião do presidente do tribunal.
A decisão, no entanto, “não foi um ponto fora da curva” para um tribunal conservador de um Estado republicano, afirma Kelly Baden, vice-presidente de políticas públicas do Instituto Guttmacher, que monitora a legislação sobre aborto nos EUA.
“Vemos que muitas autoridades eleitas e juízes muitas vezes entram nesse debate a partir de pontos de vista altamente religiosos”, diz ela.
Embora a Suprema Corte do Estado do Alabama não seja nomeada pelo presidente dos EUA, mais de 200 juízes foram indicados por Donald Trump para os tribunais federais durante seu mandato de quatro anos, conquistando um apoio duradouro dos evangélicos americanos.
Durante sua gestão, ele conseguiu nomear três novos juízes para a Suprema Corte do país, formada por nove membros — todos os quais votaram com a maioria para a anulação da decisão Roe x Wade de 1973, que garantia o direito federal ao aborto.
Desde que essa decisão, em 2022, reabriu uma batalha nacional sobre os direitos reprodutivos, os tribunais do Missouri citaram ensinamentos bíblicos para justificar a restrição do direito ao aborto — e um juiz nomeado por Trump no Texas, que trabalhou anteriormente para uma organização jurídica cristã, tentou impor uma proibição nacional à mifepristona, uma pílula abortiva usada comumente nos EUA.
Embora muitos políticos republicanos se sintam confortáveis com tais decisões, as restrições ao aborto impostas por tribunais conservadores se revelaram um tema forte de campanha para os democratas nas últimas eleições, incluindo as eleições de meio de mandato de 2022.
A decisão do Alabama, tomada por juízes republicanos e que afeta os tratamentos de fertilidade — que contam com amplo apoio da opinião pública americana —, foi um passo além, suscitando o receio imediato de uma repercussão política num ano de eleições presidenciais.
Qualquer sinal de ameaça à fertilização in vitro pode agravar a ira que já teve um custo para os republicanos desde a revogação da decisão Roe x Wade, especialmente entre as mulheres que vivem nos subúrbios americanos e aquelas que se sentem desconfortáveis com a proibição do aborto.
O próprio Trump, favorito na corrida pela nomeação republicana para concorrer à Casa Branca, manifestou fortemente seu apoio à fertilização in vitro, fazendo um apelo aos legisladores do Alabama para preservarem o acesso ao tratamento. Sua concorrente pela indicação republicana, Nikki Haley, pareceu inicialmente apoiar a decisão, mas depois voltou atrás.
“É uma vitória filosófica para o movimento pró-vida porque exerce o reconhecimento da vida em gestação”, afirmou Eric Johnston, presidente da Coalizão Pró-Vida do Alabama.
“Mas você entra em uma situação muito difícil, na qual você tem esse procedimento médico que é aceito pela maioria das pessoas. Então como você lida com isso? Esse é o dilema.”
“Concordo com o parecer no geral — acho que é uma opinião bem escrita do ponto de vista jurídico e do ponto de vista médico”, acrescentou.
“Mas acho que a comunidade pró-vida, de uma maneira geral, apoia a fertilização in vitro, conheci e trabalhei com muitas pessoas que tiveram filhos por meio da fertilização in vitro. E, ao mesmo tempo, acham que o aborto é errado. Essa questão é muito diferente do aborto, mas tem a ver com a vida.”
O que acontece agora com os tratamentos de fertilidade?
Para pacientes do Estado do Alabama, a última semana foi marcada por telefonemas em pânico para clínicas, e-mails para legisladores locais e uma corrida por parte de alguns para tentar transferir embriões congelados para fora do Estado.
Rodney Miller, de 46 anos, e a mulher, Mary Leah, de 41, passaram uma década tentando ter filhos, antes de recorrer à fertilização in vitro. Há 18 meses, eles deram à luz gêmeos, que foram adotados como embriões congelados.
Ele diz que “agradece ao Senhor pelos avanços na ciência e na medicina” que tornaram isso possível.
O casal está agora passando pelo processo novamente — e aguardando para ver se dois embriões transplantados nesta semana vão dar origem a uma gravidez.
“Isto não é uma vitória [para a direita cristã]”, afirma Rodney, que trabalha para a Carrywell, organização que apoia famílias que sofrem de infertilidade.
“É o caso clássico de você vencer a batalha, mas perder a guerra. Menos crianças vão nascer por causa disso, a menos que as coisas mudem.”
“Como nos tornamos um Estado em que se você quiser interromper uma gravidez, você tem que deixar o Estado, e se quiser iniciar uma gravidez, por meio da fertilização in vitro, você [também] tem que sair do Estado?”, questiona.
Se a decisão no Alabama vai influenciar decisões em outros lugares, é uma questão em aberto.
Projetos de lei sobre “personalidade fetal”, que consagram a ideia de que a vida começa na concepção, foram introduzidos em mais de uma dúzia de Estados.
Mas estes projetos de lei, apesar de promoverem a ideia de que um feto ou embrião é uma pessoa, não relacionam isso explicitamente com o contexto da fertilização in vitro, segundo Kelly Baden, do Instituto Guttmacher.
A decisão do Alabama — com suas implicações que vão muito além do acesso ao aborto — não constitui, portanto, uma tendência, na opinião dela.
A advogada de família do Alabama, Ashleigh Meyer Dunham, que também recorreu à fertilização in vitro, tem trabalhado com um grande número de casos afetados pela decisão.
Ela disse estar “aterrorizada” com a possibilidade de que pacientes de fertilidade em outros Estados possam acabar sendo afetados.
“Acho que a maior preocupação é que as pessoas em outros lugares se esqueçam de nós e pensem: ‘Ah, eles são apenas um Estado conservador, são todos caipiras. Não se preocupe, isso nunca vai acontecer aqui’.”
“E quando as pessoas se dão conta isso está acontecendo em outros Estados que são ultraconservadores.”
Dado que a decisão do Alabama envolve uma interpretação da lei estadual, e não da lei federal, é pouco provável que chegue à Suprema Corte dos EUA.
Atualmente, está tramitando na Câmara estadual do Alabama um projeto de lei, apresentado por democratas, que teria como objetivo interromper efetivamente a decisão — e permitir que os tratamentos sejam retomados como antes.
A expectativa é de que os republicanos apresentem seu próprio projeto de lei. Se fizerem isso, vão precisar encontrar uma forma de contemplar um eleitorado religioso dividido — enquanto alguns celebram a decisão do tribunal, outros estão desconcertados com suas potenciais implicações para a fertilização in vitro.
Margaret está rezando para que os legisladores encontrem uma solução.
“Não sou muito de me manifestar, sou reservada. Se algum dos meus amigos ou familiares soubesse que estou enviando e-mails para todos os deputados e senadores, acho que ficariam chocados.”
Ela respira fundo.
“Mas isso mexeu comigo. Só consigo pensar nisso agora.”
*Alex Lederman contribuiu com esta reportagem do Alabama. Pesquisa adicional de Kayla Epstein, em Nova York.