Países e museus ao redor do mundo têm aceitado restituir aos lugares de origem objetos levados durante o período colonial ou contrabandeados em períodos mais recentes; em maio, Brasil conquistou um assento no mais importante comitê internacional sobre o tema.
Um fóssil de uma espécie de dinossauro recém descoberta, um manto de penas vermelhas com mais de 300 anos de idade, além de centenas de artefatos indígenas —depois de décadas no exterior, esses itens de importante valor científico e histórico voltarão ao país onde foram originalmente encontrados: o Brasil.
As devoluções, todas anunciadas no último mês de junho (leia mais detalhes abaixo), fazem parte de um movimento global pelo retorno aos seus países de origem de artefatos históricos, culturais e paleontológicos que foram levados durante o período colonial ou, ainda, traficados ao longo das últimas décadas.
Até há pouco tempo, o Brasil estava alheio a essa onda. Dois fatos recentes, no entanto, prometem inserir o país nos debates internacionais sobre a restituição de patrimônio cultural:
- O bem-sucedido movimento pela repatriação do fóssil Ubirajara jubatus —contrabandeado para a Europa e usado por pesquisadores alemães para descrever uma nova espécie de dinossauro, considerada ancestral das aves.
- E a entrada do Brasil no mais importante comitê internacional sobre o tema.
“O número crescente de negociações exitosas para a repatriação de bens culturais no mundo mostra que se trata de uma ideia cujo tempo chegou”, afirmou ao g1 o diplomata Marco Antônio Nakata, diretor do Instituto Guimarães Rosa, órgão do Ministério das Relações Exteriores voltado para a diplomacia cultural.
Exemplos de negociações recentes no exterior:
- Em dezembro, a Alemanha devolveu à Nigéria sua coleção dos chamados “bronzes de Benin”, saqueados em uma invasão britânica no final do século 19.
- Meses antes, as autoridades americanas apreenderam no Metropolitan Museum of Art (o Met, em Nova York) antiguidades romanas e egípcias, após investigações apontarem que elas haviam sido roubadas — em 2019, o Met já havia devolvido ao Egito um sarcófago de ouro que viralizou depois de uma foto com Kim Kardashian e que também tinha sido contrabandeado.
- Agora em julho, depois de um comitê governamental recomendar o retorno “incondicional” de bens culturais saqueados, a Holanda anunciou a restituição de quase 500 artefatos para suas antigas colônias na Ásia, a Indonésia e o Sri Lanka (veja mais casos em disputa no mapa mais abaixo).
As ministras alemães da Cultura e das Relações Exteriores entregam bronzes de Benin, que estavam na Alemanha, ao então ministro dos Negócios Estrangeiros da Nigéria. Segundo a ministra das Relações Exteriores, a devolução faz parte de uma tentativa de endereçar o “sombrio passado colonial” alemão. — Foto: Olamikan Gbemiga/AP
“Negociações de repatriação que hoje apresentam desfecho favorável talvez não fossem possíveis há vinte ou mesmo dez anos“, disse Nakata, do Itamaraty.
As negociações de restituição se dão de maneiras variadas e nem sempre partem dos governos —por vezes, comunidades locais pedem a restituição de objetos sagrados ou, no caso de fósseis, a comunidade científica nacional se mobiliza (como aconteceu com o Ubirajara jubatus). Há ainda casos de museus e universidades que, por iniciativa própria, fazem a devolução.
Segundo Letícia Haertel, mestre em direito e especialista em direito internacional do patrimônio cultural pela Universidade de Genebra, na Suíça, o contato com o patrimônio cultural não é importante apenas para fins de pesquisa, mas também para o fortalecimento da cultura e construção de identidade.
“Muitas vezes, quando esses objetos são levados para longe de seus locais de origem, são descontextualizados e exotizados. Perdem-se informações valiosas”, disse ela ao g1.
É o caso de um dos 11 mantos tupinambás que foram levados do Brasil ao longo dos séculos 16 e 17 e hoje fazem parte de acervos europeus (leia mais abaixo). O exemplar que está no Museu Real de Arte e História de Bruxelas chegou a ser erroneamente classificado como de origem mexicana, recebendo a alcunha de “Capa de Montezuma”.
Manter ou devolver?
Há algumas décadas, pedidos de repatriação (retorno ao país de origem) e restituição (devolver determinado artefato a uma comunidade, grupo, museu, instituição ou país) tinham pouca acolhida em países da Europa e da América do Norte.
“O debate mais antigo no campo da restituição se dá entre duas correntes, a do internacionalismo cultural e a do nacionalismo cultural”, explica Haertel.
“No início dessas discussões, prevalecia o internacionalismo, que diz que os objetos têm que estar nos lugares em que seriam acessíveis ao maior número de pessoas, preservados nos chamados ‘museus universais’, como o Louvre, em Paris, ou o Museu Britânico, em Londres”, diz a especialista. “Já a premissa do nacionalismo cultural — conceito distinto de outras concepções de ‘nacionalismo’ em distintos eixos de análise — é que os objetos fiquem no país de origem, cabendo ao país de origem decidir o destino deles.”
Os argumentos dos defensores da manutenção de peças em “museus universais” passam pela ideia do mérito de concentrar em um único lugar referências de várias culturas, possibilitando a observação de conexões e diferenças entre elas. A infraestrutura desses museus, supostamente mais apropriada para a proteção dessas peças, também costuma ser lembrada.
No entanto, diante da crescente revisão no meio acadêmico a respeito dos significados e efeitos da colonização e a popularização de vozes antes periféricas nos meios artístico e político, cada vez mais museus e mesmo governos estão questionando esses argumentos.
Um momento de virada lembrado por muitos especialistas foi o inesperado discurso do presidente francês Emmanuel Macron, durante uma visita a Burkina Faso, em 2017.
“Eu não posso aceitar que uma grande parte do patrimônio cultural de vários países africanos seja mantida na França. Há explicações históricas para isso, mas não há uma justificativa válida, duradoura e incondicional”, afirmou.
Na ocasião, ele disse ainda que gostaria que, em cinco anos, fossem estabelecidas as condições para a devolução temporária ou permanente do acervo africano aos países de origem.
A fala disparou a produção de pesquisas sobre a coleção colonial mantida na França, além de um relatório oficial encomendado pelo governo francês, incentivando outros países e museus a questionar como objetos de suas antigas colônias foram parar em seus acervos. Entre os séculos 14 e 20, durante o colonialismo e, posteriormente, o imperialismo, países europeus, como Portugal, Espanha, França, Holanda, Alemanha e Inglaterra, invadiram e ocuparam territórios nas Américas, África e Ásia.
Como age uma das maiores instituições culturais do mundo
De 2020 para cá, uma das maiores instituições culturais do mundo, a Fundação do Patrimônio Cultural Prussiano, que administra os mais importantes museus de Berlim, na Alemanha, devolveu restos mortais para a Nova Zelândia e o Havaí, mais de 500 bronzes de Benin para a Nigéria e outros 24 artefatos para a Namíbia.
Agora em junho, a fundação também devolveu de máscaras sagradas do povo Kogi para a Colômbia — entregues em uma cerimônia com os presidentes dos dois países em meados de junho. O governo colombiano, por sua vez, entregou os itens aos indígenas.
Para o presidente da fundação, Hermann Parzinger, esse movimento se deve à “crescente consciência social em torno da história colonial”. Ao g1, ele explicou que também fez diferença a experiência prévia da fundação em lidar com a restituição de peças artísticas, etnográficas e paleontológicas saqueadas pelos nazistas durante a 2ª Guerra Mundial em vários países.
“Para nós, é algo relativamente normal um museu endereçar a questão: como esses objetos chegaram à coleção? Esse determinado objeto foi levado ilegalmente, por uso da força, foi saqueado? Então, independentemente do contexto histórico, nós deveríamos devolver”, afirmou.
Questionado pela reportagem sobre duas das peças mais famosas dos museus que administra — o busto de Nefertiti, descoberto por arqueólogos alemães no Egito em 1912 e reclamado no passado por autoridades egípcias, e o Altar de Pergamon, uma imensa estrutura de mármore levada inteira da Turquia, que também já tentou reaver a peça —, Parzinger afirma que nenhuma delas foi roubada e que não há pedidos oficiais dos respectivos governos pela restituição.
“Nós não podemos dizer que no geral qualquer objeto da Ruanda, da Bolívia ou da Coreia que está na Alemanha é a priori ilegal e deveria ser devolvido. Isso seria uma loucura. Assim, um museu brasileiro só poderia mostrar arte brasileira, um museu alemão só arte alemã. Seriam os museus mais chatos do mundo e nós nunca aprenderíamos nada sobre a humanidade”, disse o diretor.
Em uma cerimônia em Leiden, no último dia 10 de julho, a Holanda anunciou a devolução, para Indonésia e Sri Lanka, de centenas de artefatos saqueados durante o período colonial. A iniciativa foi classificada como um “momento histórico” para as relações entre Indonésia e Holanda por uma autoridade indonésia. — Foto: Aleksandar Furtula/AP
Restituir ou repatriar?
De fato, é um debate complexo. Até porque muitas e negociações de devolução se dão entre museus ou entre museus e comunidades. Nem sempre os estados são envolvidos.
A Convenção de 1970 das Organizações das Nações Unidas (ONU), ratificada tanto pelo Brasil quanto pela Alemanha, é o instrumento que orienta as negociações entre países. O tratado define que os signatários precisam adotar práticas contra importação, exportação e transferência ilícita de propriedade cultural, além de fazer as reparações necessárias.
A Convenção, no entanto, não é retroativa, o que permite que alguns países usem a data em que assinaram o tratado para decidir se devolverão determinado objeto ou não. Há, ainda, quem se apoie em antigos acordos firmados entre os países dominantes e suas ex-colônias para justificar a propriedade de certos itens.
As relações diplomáticas também entram na conta. Casos de restituição ajudam a construir o “soft power” de um país (a influência cultural e ideológica exercida pelas nações). Devolver a uma antiga colônia seu patrimônio cultural pode ser lido como um gesto de boa vontade para reatar ou estreitar relações. Para países do sul global, clamar pelo retorno de objetos com forte valor simbólico pode ser uma forma de se afirmar politicamente.
“As devolução não se tratam de benevolência dos países europeus”, diz Rodrigo Christofoletti, professor de Patrimônio Cultural no curso de História da Universidade Federal de Juiz de Fora. “E sim uma tentativa de corrigir equívocos da colonização e fazer a manutenção de um capital cultural perdido ao longo do tempo.”
Em vários casos, a repatriação, ou seja, o retorno ao país de origem, é apenas um primeiro passo — que, por sua vez, nem sempre é o suficiente.
“A repatriação é importante, mas a restituição é mais ainda, porque é ela que fará com que as comunidades locais tenham acesso ao seu patrimônio, muitas vezes desconhecido delas próprias”, afirma o paleontólogo Juan Cisneros, professor da Universidade Federal do Piauí, que atuou fortemente na restituição do fóssil do Ubirajara jubatus.
“Se as pessoas não conhecem seu patrimônio, como que vão valorizar? O patrimônio tem que estar perto das pessoas”, diz ele.
Letícia Haertel concorda com a necessidade de o debate não se encerrar com a chegada do objeto ao território nacional. Para ela, as vozes das comunidades do local de origem de determinado artefato devem ser determinantes na definição do destino final.
“Esse diálogo deve ser iniciado antes do próprio pedido de restituição, porque muitas comunidades possuem demandas que divergem ou que vão além da mera devolução física”, explica ela.
O Brasil nessa história
Diferentemente de vizinhos como o México e sua luta pelo retorno do Cocar de Montezuma, ou a Colômbia e sua tentativa de reaver o tesouro de Quimbaya, o Brasil não possui demandas famosas de restituição — o que pode causar certo estranhamento, considerando a existência de mais de 300 povos indígenas, os três séculos de dominação colonial e a vinda forçada de milhares de pessoas de origem africana para o território brasileiro.
Acontece que o Brasil simplesmente não sabe o que possui em acervos espalhados pelo mundo. Não há, ainda, levantamentos nacionais dos bens originalmente encontrados no território brasileiro que estejam atualmente no exterior.
“Ainda não temos dados consolidados sobre a quantidade de bens culturais que necessitam ser repatriados, mas o Brasil tem se empenhado em dialogar para assinar acordos de cooperação para a repatriação dos bens”, disse o Ministério da Cultura em resposta ao g1.
O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) possui o Banco de Bens Culturais Procurados (BCP), que abrange bens furtados, roubados ou desaparecidos que sejam tombados em qualquer instância federativa, além de bens arqueológicos. Mais de 1.640 itens estão na lista.
Em 2018, uma delegação franco-brasileira, composta por especialistas indígenas e acadêmicos, foi recebida em dois museus franceses (o Quai Branly, em Paris, e o Museu de Toulouse) para fazer um inventário dos itens de origem amazônica. O projeto COLAM (Coleções dos Outros e Memórias de Encontros: Objetos Etnográficos, Plantas e Narrativa) identificou 15 coleções com objetos com documentação incompleta associados ao povo Mebêngôkre-Kayapó.
Em 1999, já haviam sido identificadas 2.800 peças de origem amazônica em coleções de 53 museus franceses, mas o Quai Branly, que possui um dos mais relevantes acervos etnográficos na França, ainda não tinha realizado um inventário do tipo.
Esse cenário de relativa ausência de demandas brasileiras deve mudar com a entrada do Brasil, pela primeira vez na história, no comitê internacional responsável pelo acompanhamento da Convenção da Unesco de 1970.
“O grande valor do assento brasileiro é poder, como país, ter acesso a informações e a demandas de uma área em que éramos absolutamente coadjuvantes”, diz o professor Christofoletti.
Uma das intenções brasileiras no comitê é ampliar a lista de itens protegidos pela convenção para incluir, por exemplo, fósseis não inventariados.
O retorno de fósseis brasileiros e a vitória no caso do Ubirajara
Cretapalpus vittari homenageia a cantora brasileira e viveu no Cariri cearense há 122 milhões de anos. O fóssil foi entregue ao Brasil por uma universidade americana. — Foto: The Journal of Arachnology/Reprodução
São justamente os fósseis que têm atraído mais atenção e mobilizado pedidos de restituição, especialmente a partir do caso do Ubirajara jubatus.
Em 2020, pesquisadores alemães publicaram um artigo em uma revista científica, sem a participação de brasileiros, descrevendo uma nova espécie de dinossauro, com base em um fóssil encontrado na região do Cariri cearense. Como todos os fósseis são considerados bens da União desde 1942 e não podem ser transportados para fora do país sem autorização do governo, a publicação chamou atenção da comunidade paleontológica no Brasil.
A paleontóloga Aline Ghilardi, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, começou uma campanha on-line pela restituição, que fez tamanha pressão que o museu alemão onde estava o fóssil se viu obrigado a deletar seu perfil em uma rede social. O Ministério Público Federal no Ceará instaurou procedimento para investigar a saída da peça do país. O Itamaraty e o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação também iniciaram conversas com os alemães.
Com os crescentes questionamentos sobre a legalidade da aquisição do fóssil, a revista científica retirou do ar o trabalho dos pesquisadores alemães. Outra iniciativa crucial foi a parceria entre cientistas brasileiros e de outros países para publicar artigos científicos sobre práticas coloniais na paleontologia, inserindo o debate no meio acadêmico. Ghilardi e Juan Cisneros, dois dos autores, enviaram uma carta à autoridade alemã responsável, que se comprometeu a investigar. Meses depois, em 2022, ela anunciava a decisão de repatriar o Ubirajara —enfim devolvido em junho deste ano.
“É um ganho do ponto de vista político, do respeito à nossa ciência, aos nossos pesquisadores e às leis brasileiras”, disse Hermínio Ismael de Araújo Jr., presidente da Sociedade Brasileira de Paleontologia, ao g1. “Também sinaliza que estamos aptos a receber mais materiais e, a partir dessa vinda, alavancar a valorização dos nossos museus, equipamentos culturais e da nossa ciência.”
Em meio à pressão pela devolução do Ubirajara, o Brasil obteve a primeira repatriação de fóssil: em 2021, depois do pedido formal do Museu de Paleontologia Plácido Cidade Nuvens (da Universidade Regional do Cariri, Urca), a Universidade do Kansas devolveu um valioso fóssil de aranha (batizado em homenagem à cantora Pablo Vittar), além de outros 35 fósseis de aracnídeos que os cientistas brasileiros nem sabiam que estavam nos Estados Unidos.
No ano passado, a Itália também devolveu um fóssil de um peixe que viveu na Bacia do Araripe (PI, CE e PE) há 100 milhões de anos. A peça, avaliada em quase 3 mil euros, estava sendo comercializada ilegalmente em um site de leilões —o que ainda acontece com bastante frequência.
Recentemente, a França apreendeu vários fósseis de origem brasileira que seriam leiloados. Dois lotes, um de 998 peças, e outro de 46 itens (em sua maioria insetos e peixes), serão repatriados.
“São peças raríssimas, de qualidade ímpar. Realmente escolheram a dedo o que ia ser traficado. E estamos falando de tráfico mesmo: foi apreendido num container que estava entrando na França como se fosse quartzo”, conta Alysson Pinheiro, diretor do Museu de Paleontologia Plácido Cidade Nuvens, sobre o lote de 998 fósseis, que inclui dinossauros, tartarugas e aves.
Também está na França o fóssil praticamente completo de um pterossauro de 112 milhões de anos, encontrado no Araripe. Este ainda não teve o pedido de repatriação aceito. O Ministério Público Federal no Ceará abriu inquérito nos três casos.
“Nós buscamos colaboração das autoridades dos países para realizar a busca, a apreensão e, depois, a repatriação. Algumas situações são mais fáceis, porque temos tratados de cooperação bilateral penal. Nos casos em que não temos tratados bilaterais, precisamos muitas vezes usar tratados mais amplos, como a convenção da Unesco”, explica o procurador Rafael Rayol, do MPF-CE.
Há, ainda, outros casos investigados pelo MPF-CE de fósseis que não foram devolvidos, um na Itália, outro na Coréia do Sul e um conjunto de 60 peças na Alemanha.
“O mérito da descoberta e o prestígio são atribuídos às instituições do Norte Global, que continuam a obter financiamento e recursos que poderiam ser destinados às instituições e pesquisadores do país de origem. Perde-se a oportunidade de descentralizar a produção global de conhecimento e distribuir recursos de forma mais justa”, explica a especialista em direito do patrimônio Letícia Haertel.
O manto tupinambá e o repensar das curadorias
Mantos Tupinambás pela Europa
Dinamarca
Bélgica
França
Suíça
Itália
No mês passado, o Museu Nacional da Dinamarca anunciou a devolução de um dos cinco mantos de origem tupinambá em seu acervo. O exemplar, que está há cerca de 300 anos no país, é considerado extremamente raro por ser um dos mais bem preservados e por suas penas vermelhas de guará (ave típica do litoral atlântico), costuradas em uma malha por meio de uma técnica ancestral do povo tupinambá.
As conversas para o retorno do manto, previsto para 2024, envolveram o embaixador brasileiro na Dinamarca, Rodrigo de Azeredo Santos, e o Museu Nacional (no Rio de Janeiro), mas, principalmente, a comunidade tupinambá da Serra do Padeiro, localizada na ainda não demarcada Terra Indígena Tupinambá Olivença (Bahia).
Desde 2018, a artista e antropóloga Glicéria Tupinambá, de Olivença, vem fazendo um trabalho de pesquisa que a levou numa peregrinação por museus europeus para conhecer pessoalmente — e ouvir— os objetos sagrados produzidos há séculos por seus antepassados. Suas descobertas estão sendo incorporadas às pesquisas de uma rede formada pelos museus que possuem mantos tupinambás.
“É uma escuta, estou fazendo essa escuta ancestral dos objetos”, diz ela que já localizou flautas de osso em Copenhague e trompetes tupinambás na Holanda.
Gliceria Tupinambá em encontro com o manto de seus ancestrais no Museu Nacional da Dinamarca, em Copenhague, em 2022. — Foto: Renata Cursio Valente/Setor de Etnografia e Etnologia do Departamento de Antropologia do Museu Nacional (URFJ)
Segundo o cacique Babau, da Serra do Padeiro, os tupinambá não pretendem, necessariamente, atuar pela devolução de todos os objetos.
Com curadoria de João Pacheco de Oliveira, o Museu Nacional vem trabalhando para recompor seu acervo também em um processo de escuta de comunidades indígenas e quilombolas — as detentoras originais dos saberes, técnicas e significados de objetos vistos pela sociedade branca como de valor etnográfico.
Um dos casos de restituição à comunidade mais famoso no Brasil é o da “machadinha Krahô”. Em 1986, os Krahô, povo que vive no nordeste do Tocantins, foi ao Museu Paulista, da Universidade de São Paulo (USP), para reaver um machado de pedra semilunar, relevante para suas tradições. Em um primeiro momento, o museu sugeriu a confecção de uma réplica a ser entregue aos Krahô, que não aceitaram. A negociação durou três anos até o museu optar pela devolução.
“Qual é o valor de um objeto desses na vitrine de um museu?”, questiona Christofoletti. “Estamos em um momento de novas atuações de museus, curadorias compartilhadas, pensar o espaço e os objetos museográficos de forma compartilhada com os detentores do saber.
Por Isabel Seta, g1 — São Paulo