Uma em cada dez brasileiras tem endometriose; e diagnóstico é desafio

A banalização da dor feminina é considerada o maior empecilho ao diagnóstico.

O casamento estava marcado para o dia em que Fabiana Cayres e seu noivo comemorariam um ano de namoro, 21 de agosto de 2012. Em seguida, o casal passaria um mês em Paris – e havia a ideia de começar a tentar engravidar na lua de mel. Faltando três semanas, Fabiana estava no trabalho quando teve uma cólica muito intensa.

Ela estava acostumada a sentir dor no período menstrual, mas naquele dia foi tanta que desmaiou. Levada às pressas a um hospital, recebeu, finalmente, um diagnóstico: endometriose profunda, já instalada em intestino, bexiga, apêndice, ureteres, ovários e útero. “Como acontece com a maioria das mulheres, meu diagnóstico foi tardio e precisei me submeter a uma cirurgia de grande porte, que incluiu a retirada de parte do intestino e da bexiga”, diz Fabiana, que, por causa da doença, virou influenciadora digital.

A história não é incomum. A banalização da dor feminina é considerada o maior empecilho ao diagnóstico. Mesmo com cólicas lancinantes, tendem a achar que é normal.

O resultado disso: um diagnóstico tecnicamente não muito complicado leva de sete a dez anos. E a doença está longe de ser rara: atinge 10% das mulheres em idade reprodutiva – taxa similar à da diabete. Estima-se que pelo menos 8 milhões sofram no País por causa da doença e boa parte não saiba.

Hoje, pela primeira vez, será celebrado o Dia Nacional de Luta Contra a Endometriose. “Há uma normalização da dor. Muitas mulheres têm cólicas incapacitantes e dores pélvicas e acham que isso é normal. E, em geral, a sociedade também considera normal, mesmo alguns colegas médicos”, diz o especialista Patrick Bellelis, colaborador do setor de endometriose do Hospital das Clínicas da USP e membro da Associação Brasileira de Endometriose e Ginecologia. “O primeiro passo, e também o mais importante: fazer a população enxergar que sentir dor não é normal. Se compromete suas atividades, produtividade, relacionamento, não é normal. Sentir dor no sexo não é normal. Dores pélvicas também não são normais”, diz ele. Segundo a Sociedade Brasileira de Endometriose (SBE), 57% das pacientes com a doença sofrem com dores crônicas; e em 30% dos casos há infertilidade.

A doença

O endométrio é uma mucosa que reveste a parede interna do útero. Essa película é sensível às alterações do ciclo menstrual, e recobre a região onde o óvulo se implanta depois de fertilizado. Se não houver fecundação, parte é eliminada durante a menstruação. O restante volta a crescer e o processo se repete a cada novo ciclo. A endometriose é uma alteração no funcionamento normal dessas células que, em vez de serem expelidas, migram no sentido oposto e caem nos ovários ou na cavidade abdominal, onde voltam a se multiplicar e sangrar.

As causas ainda não estão bem estabelecidas. Uma hipótese é que parte do sangue reflua através das trompas durante a menstruação e se deposite em outros órgãos. Além disso, seria necessária alguma predisposição genética relacionada a deficiências no sistema imunológico. “Há várias formas de tratamento, mas, basicamente, podemos dizer que existem tratamentos clínicos, com hormônios e medicações analgésicas e anti-inflamatórias, e cirúrgicos, em que os focos são retirados”, diz o ginecologista Maurício Abrão, da Faculdade de Medicina da USP.

O diagnóstico, segundo ele, está cada vez menos complicado, sobretudo após surgirem exames de ultrassom e ressonância magnética específicos. O ultrassom transvaginal normal não detecta o problema. “A dificuldade (do diagnóstico) é mundial. Inicialmente porque não havia exame específico, mas agora já temos ultrassom especializado, mapeamento, ressonância pélvica”, diz a presidente da SBE, Helizabet Salomão Ayroza. “Mesmo assim, há esse atraso no mundo todo justamente porque o principal sintoma é a cólica menstrual, que é subvalorizada.” Além disso, lembra, culturalmente as mulheres tendem a fazer muitas coisas ao mesmo tempo, se colocar em segundo plano, e priorizar os demais. “Um dos maiores problemas, que temos combatido firmemente, é o fenômeno do gaslighting médico, quando profissionais do sexo masculino e feminino menosprezam sintomas narrados pela paciente, têm dificuldade de ouvir, de valorizar”, afirma Abrão.

Exemplo

Por muitos anos, Fabiana teve cólicas intensas mensalmente, sem nunca receber diagnóstico. “Nenhum médico que me acompanhou sugeriu qualquer investigação. Eu, por total desconhecimento, tampouco busquei ajuda especializada”, conta a influenciadora. A história é similar à da psicóloga Ana Viggiano, de 45 anos. “Diferentemente de muitas mulheres, só fui ter os primeiros sintomas depois dos 30 anos, quando comecei a ter cólicas insuportáveis”, diz. “Fui a sete médicos diferentes para conseguir diagnóstico. Muitos disseram que eu não tinha nada. Sentia dores insuportáveis e tinha de ouvir comentários muito desagradáveis desses médicos, como ‘isso é vontade de casar’, ‘isso é vontade de ter neném’. Eram pouco objetivos, pouco científicos.”

Quando finalmente foi diagnosticada, a endometriose já estava avançada e Ana teve de se submeter a uma cirurgia grande para retirar parte do intestino. Outras quatro se seguiram para eliminar os focos em outros órgãos. “Nunca me conformei com a negativa dos médicos, mas a maioria das mulheres passa anos com sintomas negligenciados”, disse. Por isso, a psicóloga decidiu se especializar no atendimento a mulheres com endometriose. “Muitas (pacientes) desenvolvem quadros de ansiedade e depressão. A dor altera os processos neuroquímicos”, afirma. “A mulher está passando por um sofrimento físico terrível, busca ajuda profissional e, além de não ser cuidada, é maltratada, considerada desequilibrada. Muitas começam a duvidar da própria sanidade mental, a achar que aquela dor não faz sentido. Ainda tem os aspectos conjugais, pois a doença pode provocar dor na relação sexual e gerar dificuldades para engravidar.”

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.