A ficção estreia no próximo dia 25 na Netflix, e tem Seu Jorge e Naruma Costa como protagonistas
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Em uma favela de São Paulo, uma menina vê a polícia espancar seu irmão antes de ele ser preso sob acusação de tráfico. Anos mais tarde, ela se torna advogada, e ele assume a liderança de uma facção criminosa.
O título da série “Irmandade”, ficção que estreia no próximo dia 25 na Netflix, tem duas interpretações bastante possíveis. Refere-se à relação familiar de dois protagonistas que nasceram em um mesmo barraco de madeira e que seguem vidas diferentes sob o prisma da Justiça. E também faz menção ao PCC, ou à declarada fraternidade entre aqueles que, como membros da facção paulista, chamam-se uns aos outros usando justamente o termo “irmão”.
Interpretados por Naruna Costa e Seu Jorge, os irmãos de sangue vão expor em suas histórias a precariedade com que os tribunais e a polícia tratam os pobres no país.
A série, produzida em parceria com a O2, surge no momento imediatamente posterior a uma tentativa de compreensão mais aprofundada do assunto. Sua estreia ocorre um ano após o lançamento de dois livros volumosos que retratam o poder paralelo criado pelo tráfico no Brasil: “Irmãos – Uma História do PCC” (Companhia das Letras), de Gabriel Feltran, e “A Guerra: A Ascensão do PCC e o Mundo do Crime” (Todavia), de Bruno Paes Manso e Camila Nunes Dias.
O tráfico também foi tema de séries e novelas que chegaram à TV nos últimos dois anos. A violência que circunda a venda de drogas estava em “Narcos”, que a Netflix estreou em 2015 com direção de José Padilha, em “A Força do Querer”, da Globo, de 2017, em “Impuros”, da Fox Premium, no ano passado, na americana “A Rainha do Sul”, com Alice Braga e na paulistana “Sintonia”, que a Netflix disponibilizou no primeiro semestre deste ano.
“Irmandade”, segundo seus criadores, humaniza aqueles que, no noticiário, são mostrados como inimigos de uma ética imposta pela chamada guerra às drogas. Não se furta à obrigação de fazer audiência, produzindo algo que outros países além do Brasil vão consumir como entretenimento. Mas, conforme diz Pedro Morelli, criador e diretor da série, ela procura ser responsável em não deturpar uma realidade tão cara ao brasileiro.
Morelli não nega que a escolha do tema tenha base comercial. “Com certeza tem um lado de mercado muito forte, é quase um gênero o negócio do tráfico de drogas [na TV]”, diz.
“A nossa intenção foi fazer entretenimento, ter a tensão que gera esse gênero. Tem espionagem, pessoa infiltrada, e ao mesmo tempo traz uma discussão que tenta entender o porquê de o crime organizado ser do jeito que ele é.”
No decorrer de “Irmandade”, compreenderemos que a palavra não carrega a doçura embutida nas fábulas infantis ao estilo João e Maria. Entre irmãos, há amor, mas também traições, raiva, trapaças.
Felipe Sant’Angelo, um dos seis roteiristas da série, diz que a equipe se preocupou em apresentar a origem ou as razões da violência cometida tanto por aqueles que se juntam ao crime como por aqueles que tentam combatê-lo.
Essa “responsabilidade” passa, segundo eles, por um aprofundamento teórico. Por trás da história de “Irmandade”, há leituras de reportagens e teses acadêmicas sobre o tema, conta Leonardo Levis, outro roteirista.
“A gente tentou ao máximo que essa série não fosse irresponsável perante questões importantes do país”, diz ele. Para Levis, não apenas era necessário ficar atento às abordagens já vistas em produções do gênero como também levar em consideração “as coisas que não são faladas” sobre o tema.
O que o público vai ver é algo que se baseia no que seria o berço do PCC, as escolas do crime dentro do sistema prisional brasileiro. Dessa aproximação surgem, por exemplo, menções curiosas sobre o cotidiano nas cadeias, como a fabricação clandestina de uma bebida alcoólica chamada Maria Louca, uma espécie de pinga.
Questionado sobre a composição de roteiristas e diretores, Morelli disse à reportagem que houve atenção para a diversificação de profissionais segundo suas classes sociais, raças e gêneros.
A atriz Naruna Costa conta que viveu perto do universo retratado na série durante sua juventude. Ela nasceu e morou na periferia de Taboão da Serra, na Grande São Paulo. “A série se passa nos anos 1990, e a periferia dos anos 1990 é algo que faz parte da minha história”, diz. “É um recorte de uma época e, mesmo passados 30 anos, o que aconteceu ainda tem reflexo no nosso cotidiano.”
Na periferia, a atriz sempre se sentiu “muito protegida” pela família. “Eles sempre fizeram questão de imprimir certa rigidez na nossa formação. Eram três mulheres crescendo numa casa, então a gente tinha uma proteção muito grande dos nossos pais”, conta.
Ainda assim, a violência estava ao redor. “Ela começava a nascer nas periferias e era tratada de forma muito naturalizada”, conta. “A gente via essa violência acontecer, principalmente nos finais de semana.”. Cotidianamente, segundo ela, a polícia entrava na favela, e “chacina era uma coisa, infelizmente, banalizada”, diz. “Obviamente, eu assistia a tudo isso de perto. Não tive amigos dentro deste universo. Mas vi pessoas muito próximas, vizinhos, indo embora, perdendo seus filhos, por conta dessa realidade que se estende até hoje”, atesta.
As locações utilizadas durante as filmagens, segundo Naruna, também foram determinantes para que toda a equipe de filmagem pudesse fazer essa aproximação entre o espectador e a realidade retratada na obra.
Há muitas cenas filmadas em um presídio paranaense ainda em atividade. E a favela onde os protagonistas vivem na infância não é cenográfica, mas sim uma comunidade de Cubatão. “A gente ter começado a gravar ali, nessa cadeia viva, sabendo que havia presidiários enquanto a gente fazia as filmagens, um lugar que tem história, que tem memória, foi fundamental para o elenco como um todo”, diz Naruna.
“Isso exigiu da gente uma responsabilidade factual”, prossegue. “Não é uma memória que a gente precisou construir. Não foi um cenário construído, um lugar que a gente pudesse colocar o pé para fora sem se comover com aquilo. A comoção existia todos os dias, como nas vezes em que a gente chegava para gravar e olhava as mulheres que iam visitar [os prisioneiros]”, conta.
Ela ainda cita a favela que, na série, é mostrada em cenas que retratam os personagens nos anos 1970. Ainda hoje, passados 40 anos, não foi difícil encontrar “uma comunidade construída com barracos de madeira, em cima de um esgoto”. Uma precariedade real, diz Naruna, a qual o espectador vai ter acesso por meio de uma ficção.